Mercadorias e futuros


por José Miguel Wisnik
O Globo
agosto 2012




Quando se trata de futuro, alinham-se logo futuristas de um lado, prontos a correr no tempo movidos pela aceleração tecnológica, e catastrofistas de outro, apegados a tudo o que não falta de sombrio nos cenários contemporâneos. Mais do que uma análise objetiva de fatos, que aliás nos ultrapassam em toda escala, acho que vão nisso também as propensões subjetivas, configurações íntimas de desejos e medos que nos arrastam para um lado e para o outro, e que em alguns se fixam na euforia do mais moderno e em outros se recolhem na melancolia da falta de sentido do mundo agressivamente mutante.

Eu, que já fui um jovem catastrofista secreto e contra a minha vontade, por temer o que me parecia inevitável, sou hoje contra a oposição mental que pretende separar nitidamente o otimismo e o pessimismo, como se essas posições esclarecessem alguma coisa. Ganhei certa fama de otimista, em meios críticos universitários e predominantemente adornianos, por sustentar uma afirmação de vida que na verdade trabalha cerradamente contra o que há de pulsão de morte mal disfarçada no mundo contemporâneo. A luta íntima com esse demônio fez com que outros, mais perspicazes mas não totalmente, vissem em mim o tipo do melancólico. Na verdade, sou tomado de uma excitação maior justamente quando a crise contemporânea, incluída a encrenca civilizacional em que estamos, nos aproxima do mais real.

Subjetividades à parte, a questão é que a catástrofe mundial passou a fazer parte inseparável da vida humana, a tal ponto que negá-la é fomentá-la. Os soldados voltaram da Primeira Guerra mudos, diz Benjamin, porque foram lançados das carroças seculares com as quais conviviam para o campo minado das explosões aéreas e terrestres. A tecnociência ultrapassa em toda linha a escala pessoal da vida. Hiroshima e Nagasaki se tornaram fantasmas de fundo na Guerra Fria; o 11 de Setembro e as tsunamis, cenários da nossa paisagem. Crianças das últimas gerações são expostas diretamente à possibilidade da tragédia global. O aquecimento global e o abalo climático, dados como irreversíveis por muitos cientistas, e minimizados por outros, tornam-se ao mesmo tempo um fato e o teatro discursivo das interpretações conflitantes. A crise econômica, empurrada com a barriga sem grandes alterações no universo do capitalismo financeiro, põe este mesmo na borda do seu abismo.

É aqui que entra o meu tema de hoje: o sistema que se alimenta da dívida insaldável participa de um tempo que aponta sem descanso para o futuro. Esse futuro já foi o Juízo Final, queimado ou estornado, como diz Oswald, pela modernidade, já foi o mito do progresso cumulativo e linear, queimado pela chamada pós-modernidade, e hoje se consuma na errática da Bolsa de Mercadorias e Futuros. O livro “Debt”, do antropólogo David Graeber (que eu conheci graças à coluna de Caetano) e os textos filosóficos e utópicos de Oswald de Andrade têm a vantagem de conceberem essa história numa escala de longa duração, que confronta o mais contemporâneo com o mais antigo.

Graeber diz que, ao contrário do socialismo real, que precisa se imaginar eterno, o capitalismo precisa do imaginário da catástrofe final, como único ponto de descanso virtual do tempo sem parada de uma dívida que não cessa. É crucial, portanto, sabermos distinguir as ameaças objetivas, sob o céu que não nos protege, da demanda imaginária de superprodução cinematográfica do apocalipse.

Graeber propõe que a dívida mundial em dinheiro seja analisada pelo teor de ficção que a embasa. Descreve os exemplos, milenares, de suspensão cíclica da dívida pelos credores, para que se volte a um zero regenerador. Mas isso acontecia, pode-se dizer, em sociedades que admitiam a circularidade do tempo. A sociedade moderna, que o esqueceu, precisa admiti-lo, não para voltar atrás, mas para poder ser mais e plenamente moderna, com uma economia que inclua seriamente o valor dos intangíveis e dos não quantificáveis.

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