O que há por trás da compra compulsiva

por Dado Salem

A Sociedade de Consumo existe desde o início da modernidade, com a ascensão da burguesia após a Revolução Francesa. Alguns dizem que o livro de Gustave Flaubert - Madame Bovary, publicado em 1856, marca esse momento, descrevendo uma mulher que consome além de suas possibilidades e se afunda em dívidas, como tentativa de aplacar uma sensação de vazio. É a ideia do “consumo logo sou”, ou "existo".




Por que consumimos? Essa questão pode parecer simples à primeira vista, mas esconde um universo complexo de significados, desejos e construções sociais. O consumo vai muito além da satisfação de necessidades básicas; ele é um elemento estruturante da identidade, da distinção social e da cultura contemporânea. Mais do que adquirir produtos, consumimos significados. Escolhemos um objeto não apenas por sua utilidade, mas pelo que ele representa para nós e para os outros. A moda, por exemplo, não é apenas estética; é um código social que define pertencimento e status. A imaginação é essencial para essa dinâmica: quando um objeto perde seu apelo imaginativo, buscamos um novo.

A transformação do consumo em um motor cultural está ligada à influência do romantismo, que consolidou a ideia de que objetos e experiências podem modificar nossa identidade e nos aproximar de nossos ideais. O ato de consumir se torna uma forma de projetar e reinventar quem somos. Historicamente, as sociedades eram marcadas pelo coletivismo, onde a identidade era herdada e fixa. Com a modernidade, houve uma transição para o individualismo, onde a identidade se tornou relacional e fluida. Esse processo se intensificou com o consumo, que passou a ser um meio de autoexpressão e diferenciação. A liberdade de escolha é um dos grandes valores do mundo contemporâneo, mas também gera tensões: queremos ser autônomos, mas também pertencemos a grupos e buscamos aprovação. Isso leva ao fenômeno do consumo como marcador de identidade, onde estilos de vida e experiências substituem bens materiais como principais formas de distinção social.

Colin Campbell, em Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno, destaca que o desejo de consumo nunca é plenamente satisfeito. O prazer de imaginar é mais intenso do que o de possuir. Essa lógica é essencial para a sociedade de consumo, pois nos mantém sempre em busca do próximo objeto ou experiência que preencherá um suposto vazio. Freud e Lacan argumentam que essa falta é constitutiva da subjetividade ocidental. Para eles, estamos sempre em busca de algo que não conseguimos nomear completamente. O consumo surge como uma forma de lidar com essa incompletude, proporcionando momentos de satisfação temporária que logo dão lugar a novos desejos. Essa dinâmica pode levar à compra compulsiva, que pode trazer alívio para sentimentos de ansiedade, insatisfação ou vazio emocional.

O socólogo Pierre Bourdieu mostrou que o gosto não é apenas uma questão pessoal, mas um fator de distinção social. O capital cultural é tão ou mais importante do que o capital financeiro na determinação do status de um indivíduo. O que consideramos "bom gosto" é construído culturalmente e serve para reforçar hierarquias sociais. A publicidade explora essa dinâmica, vendendo não apenas produtos, mas estilos de vida e valores aspiracionais. Dessa forma, o consumo se torna um jogo simbólico que define nossa posição na sociedade. Essa manipulação do desejo é um dos gatilhos para o consumo compulsivo, pois induz indivíduos a acreditarem que apenas ao adquirir determinado produto poderão alcançar satisfação ou reconhecimento.

O psicólogo Christopher Lasch argumenta que a sociedade contemporânea é marcada pelo narcisismo, onde a identidade é dependente da aprovação alheia. As redes sociais intensificam esse fenômeno, transformando a intimidade em mercadoria e criando uma cultura da imagem onde "parecer" se torna mais importante do que "ser". Esse processo gera uma sensação de vazio e ansiedade, pois a busca incessante por validação nunca é completamente satisfeita. O consumo surge como um mecanismo de escape e afirmação, alimentando um ciclo de insatisfação e renovada busca por significado. O consumidor compulsivo, nesse contexto, encontra nas compras uma resposta imediata para suas inseguranças, ainda que efêmera.

A publicidade não vende apenas produtos, mas sonhos e valores. O marketing cria uma confusão entre o objeto e o desejo pelo objeto, projetando expectativas irreais sobre a experiência de consumo. Esse fenômeno está presente em diversos aspectos da cultura, desde a estetização das relações interpessoais até a espetacularização da política. A sociedade de consumo também reforça a ideia de imediatismo. Investimos no presente e evitamos pensar no futuro. Essa lógica se reflete em tendências como o hedonismo, a cultura da experiência e a valorização da juventude.

O consumo é uma ferramenta para a construção da identidade. Escolhemos objetos e experiências que refletem quem queremos ser e buscamos nos alinhar com grupos que compartilham de nossos valores e gostos. A identidade, antes fixa e herdada, se tornou fluida e negociável. Madame Bovary, de Gustave Flaubert, ilustra essa relação ao retratar uma mulher que busca escapar do tédio por meio do consumo e da idealização romântica, consome além de suas possibilidades e se afunda em dívidas, como tentativa de aplacar uma sensação de vazio. É a ideia do “consumo logo sou”, ou "existo". Esse comportamento continua atual nas redes sociais, onde a comparação constante e a busca por experiências ideais perpetuam a insatisfação.

A sociedade de consumo não é apenas um fenômeno econômico, mas um sistema simbólico e emocional. Consumimos para nos identificar, nos diferenciar e preencher um vazio existencial. No entanto, essa lógica também gera insatisfação constante, ansiedade e um ciclo infinito de desejo e frustração. Para o consumidor compulsivo, esse ciclo pode se tornar destrutivo, levando a dificuldades financeiras, emocionais e sociais. A compreensão antropológica do consumo nos permite enxergar além da superficialidade dos objetos e compreender as complexas dinâmicas que regem nosso comportamento. Dessa forma, podemos refletir sobre até que ponto somos consumidores ativos ou apenas participantes de um sistema que nos conduz a um desejo incessante e insaciável.



Indicações de leitura:


A Distinção - Pierre Bourdieu

Ética Romântica e o Espírito do Consumismo Moderno - Colin Campbell

Culture of Narcissism - Christopher Lasch

Madame Bovary - Gustave Flaubert (há também varias versões de filmes)

Kukar-Kinney; Ridgway; Monroe
The Role of Price in the Behavior and Purchase Decisions of Compulsive Buyers
Journal of Retailing, Volume 88, Issue 1, March 2012, Pages 63-71

Mueller; Mitchell, Marino; Ertelt
Compulsive Buying
Encyclopedia of Behavioral Neuroscience, 2010, Pages 317-321

Weaver; Moschis; Davis
Antecedents of materialism and compulsive buying: A life course study in Australia
Australasian Marketing Journal (AMJ), Volume 19, Issue 4, November 2011, Pages 247-256

2 comentários:

  1. Gostava que visitassem o meu blog: http://investimentosinegocios.blogspot.pt/2013/01/fernando-pessoa-e-ovo-de-colombo.html

    É a minha humilde colaboração para este tema!

    Obrigado!

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  2. Caros, vou divulgar o estudo, tenho muito interesse nessa pesquisa, peço que compartilhem o resultado. Abs

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