Pós-modernismo e a transformação da identidade

Por Dado Salem
Janeiro 2025




O surgimento do individualismo foi uma das maiores revoluções da civilização ocidental. Num mundo antes regido por coletividades, onde a identidade estava enraizada na família, na tribo e na tradição, a modernidade trouxe uma ruptura significativa ao colocar o indivíduo no centro da experiência humana. Essa transição, que se inicia no Renascimento e se consolida com a ascensão do Capitalismo, marca a passagem de sociedades hierárquicas para estruturas mais fluidas e pautadas pelo mérito e pela diferenciação pessoal.

Nas sociedades tradicionais, a identidade estava atrelada ao coletivo. O pertencimento a uma tribo ou a um grupo social determinava a posição de um indivíduo no mundo. A identidade era herdada, baseada no sobrenome, na ocupação da família e no respeito às tradições, ou seja, a comunidade oferecia um senso de pertencimento e suporte a indivíduo. A manutenção do status era fundamental, e a vida tinha sentido na continuidade da linhagem. O sucesso era medido pelo cumprimento do papel social estabelecido e pelo legado deixado para as próximas gerações.

Com a modernidade, a racionalidade se torna um valor predominante, e a emoção é relegada ao espaço privado. A felicidade, antes um conceito coletivo, passa a ser um objetivo individual. Isso resulta num novo dilema existencial. Na ausência de um propósito herdado, cada um precisa construir o seu próprio sentido de vida. Dessa forma, a busca pela felicidade e pela realização pessoal se tornam centrais na experiência moderna, mas também geram angústia e solidão. 

Deuses imanentes, deuses transcendentes, ateísmo consumista e o futuro ancestral

Por Dado Salem
Janeiro 2025

A transformação dos deuses imanentes para os transcendentes, e posteriormente para o ateísmo, é um processo que reflete mudanças culturais, filosóficas, e históricas no modo como a humanidade se relaciona e interpreta a realidade. Os deuses, antes vivos e presentes, tornaram-se distantes, transcenderam, e por fim desapareceram, deixando o mundo vazio de sentido, que foi preenchido por marcas e coisas. Essa foi a transformação de um mundo mitológico para outro regido, supostamente, pela razão e, mais tarde, pelo dinheiro e pelo consumo. Mas, em meio ao silêncio deixado pelos deuses, surge uma pergunta: e se o futuro não estiver na busca ansiosa do novo, mas no calmo retorno ao ancestral? Talvez, ao resgatarmos o que esquecemos, possamos reencontrar a conexão perdida.





Deuses imanentes, vivos e presentes

Nas culturas mais antigas, a percepção do sagrado é imanente, ou seja, os deuses e os espíritos são forças vivas e integradas ao cotidiano das pessoas. Estão presentes nas montanhas, nos rios, no vento, no fogo, na lua, no sol, nos animais, nos insetos, nas pedras e nas plantas. Todas as formas de existência são consideradas gente, mas de outras espécies. A sociedade humana é vista, dessa forma, como uma entre uma multiplicidade de outras, e por isso vemos nessas culturas um imenso respeito por tudo, especialmente pela Terra, da qual nos consideram filhos e parte de um imenso organismo vivo interdependente. A natureza, as sociedades e o seres humanos são, portanto, aspectos correlativos e empáticos do sistema cósmico.

O antropólogo Marshall Sahlins, em seu livro The New Science of the Enchanted Universe, relata que essas culturas entendem que toda espécie possui um espírito governante com os quais os humanos devem dialogar e negociar. No caso da caça e pesca, por exemplo, é necessário antes barganhar com esses espíritos, que, mediante autorização, cedem seus indivíduos. Da mesma forma, o sucesso das plantações depende do apoio das figuras divinas correspondentes. A deusa da natureza é chamada ritualmente para contribuir e os jardins florescerem.

Os rituais não apenas invocam essas forças, mas buscam o equilíbrio com elas e demonstram um profundo respeito por todas as formas de vida. O contato com forças espirituais se dá nas atividades cotidianas, como danças, cânticos, pinturas corporais, oferendas e pelo uso de plantas sagradas como tabaco e ayahuasca. Esses atos não são vistos de maneira separada da vida prática, mas como momentos de integração e de libertação da mente. Os humanos têm, segundo eles, a responsabilidade de manter o equilíbrio com os espíritos da natureza e com seus ancestrais, cuja presença também é imanente.

As sociedades tribais ameríndias, vivem ainda sob a perspectiva de imanência divina. Antropólogos como Lévi-Strauss, Viveiros de Castro, Michael Harner, James Suzman, Malinowski, Bruce Albert e muitos outros, evidenciaram isso de diversas maneiras ao longo de seus estudos. Um relato precioso de Davi Kopenawa, pajé do povo Yanomami, intitulado A Queda do Céu, descreve essa realidade em detalhes.

Protagonistas e coadjuvantes

Por Dado Salem
Janeiro 2025



Somos todos protagonistas de nossas próprias histórias. Assumimos o papel central em nossas decisões, sonhos e ações. Cabe a nós conduzir a narrativa da nossa existência com autenticidade e responsabilidade, lidando com os desafios e escolhas que moldam quem somos. No entanto, ao mesmo tempo em que protagonizamos nossas vidas, desempenhamos papéis de coadjuvantes na história dos outros.

Não vou me aprofundar aqui em reflexões sobre a tensão intrapsíquica entre protagonismo e coadjuvância, como a dificuldade em assumir um protagonismo em pessoas com baixa autoestima ou excessivamente dependentes de aprovação externa que podem se sentir incapazes de protagonizar suas vidas, preferindo papéis de suporte ou submissão. E, por outro lado, a resistência à coadjuvância em pessoas com traços narcisistas exacerbados que podem recusar o papel de coadjuvante, enxergando isso como uma ameaça à sua identidade ou valor.