Como atravessar um deserto

Por Dado Salem
Setembro 2021

              
Parece que não há mais dúvidas de que as coisas devem piorar muito antes de começarem a melhorar. As notícias que chegam é que as mudanças climáticas são irreversíveis e a catástrofe, inevitável. 

Elizabeth Kolbert, jornalista da revista The New Yorker e vencedora do prêmio Pulitzer pelo livro A Sexta Extinção, relata que o mundo passou por cinco extinções em massa, sendo a mais famosa a que aconteceu há 65 milhões de anos quando um asteroide colidiu com o planeta e eliminou os dinossauros, entre uma série de outros animais. Atualmente, os cientistas vêm monitorando uma sexta extinção, que pode ser a mais devastadora da história, só que dessa vez a causa é o nosso estilo de vida insustentável.

O grande desafio é que mesmo se parássemos com 100% das emissões de gases de efeito estufa e passássemos a plantar florestas de forma eficiente e sistemática, os resultados práticos não apareceriam antes de algumas décadas. Esse delay entre ação e a reação do ecossistema, favorece os argumentos de políticos populistas e negacionistas fervorosos, como “provas” de que essas atitudes não trazem benefício algum, o que tenderia a fazer com que continuemos a cavar o abismo onde estamos caindo. O mais assustador é que a maioria de nós vivenciará esse colapso, porque ele já começou.

Esses dias acordei pensando nisso e num exercício de futurismo, imaginei como é viver a situação dolorosa de uma catástrofe. Apesar de não substituir a experiência, saber o que as pessoas fazem para sair dessas situações é no mínimo instrutivo. Lembrei dos Krenak, povo que continua vivendo na margem esquerda do Rio Doce, anos depois da tragédia do rompimento da barragem da Vale e não aceita sair daquele lugar. 

Ailton Krenak, possivelmente um dos mais conscientes líderes brasileiros, associa o desastre a um deserto: “Estamos dentro do desastre, ninguém precisa vir tirar a gente daqui, vamos atravessar o deserto, temos que atravessar. Ou toda vez que você vê um deserto você sai correndo? Quando aparecer um deserto, o atravesse”, diz.

Sobre a boa vida

por Dado Salem
Setembro 2021



O que é uma vida boa? Como usar bem o tempo que tenho para viver? Quais são as coisas que preciso buscar porque são fundamentais e quais outras são secundárias ou até mesmo desnecessárias? Este questionamento existe desde os primórdios da filosofia numa discussão que frequentemente girou em torno dos conceitos de Eudaimônia e Hedonia

Na Hedonia, a felicidade e o bem-estar são obtidos por meio dos prazeres, por desfrutar as coisas boas da vida e procurar evitar a dor, os desconfortos e sofrimentos. Segundo essa visão, somos movidos pela busca de objetos de desejo, alguns naturais e necessários como casa, comida, roupas, proteção, afeto… e outros desnecessários, como luxos de todos os tipos, riqueza, glamour, cargos, poder, honras, etc.

Eudaimônia, frequentemente traduzida como felicidade, seria mais corretamente definida como florescer, pois, significa literalmente o desenvolvimento pleno do daimon, o espírito que nos habita. Equivalente ao design, que contêm um projeto, um esquema em mente, um desígnio, um propósito. Eudaimônia é cumprir seu papel no mundo, o que requer um profundo autoconhecimento. Neste caso, embora as experiências de prazer sejam fortemente positivas, não seriam um objetivo a ser buscado, mas sim um subproduto da expressão dos nossos potenciais, do melhor que existe em nós colocado a serviço da sociedade.

Com vinte e poucos anos, um tempo depois de ter saído da casa dos meus pais, comecei a me questionar que vida deveria levar. Aos poucos fui percebendo que algumas coisas que considerava importantes como, morar num bairro nobre, viajar nas férias para lugares paradisíacos, jantar em bons restaurantes, ter uma família perfeita como num comercial de margarina, trocar de carro a cada 2 ou 3 anos, ter um plano de saúde com acesso aos melhores hospitais, ou seja, viver um padrão de vida elevado, e ainda, ter distinção na sociedade, ser admirado, ter sucesso… eram na verdade parte de um modelo que eu havia aprendido a valorizar. Aprendi isso com a minha família, com meus amigos e amigas, com a nossa cultura, com a publicidade... 

Esse sistema de valores culturais, essencialmente hedonistas, na maior parte das vezes costuma dirigir nossos desejos, influenciar nossos pensamentos e definir nossas escolhas. É difícil ficar fora ou ir contra essas regras sociais explícitas ou implícitas. Aquele que transgride, que se desvia, que sai do padrão, que não segue o pensamento convencional, tende a se sentir um estrangeiro na sua própria casa e muitas vezes é criticado e atacado. Não foi diferente comigo.

Os Poetas e a Leitura da Realidade

por Dado Salem


“Só é poeta o homem que possui a faculdade de ver os seres espirituais que vivem e brincam em torno dele.” Nietzsche

O estudo comparado de mitos indica que houve, logo após a pré-história, uma visão ética comum em toda a humanidade: O ser humano era considerado um microcosmo e deveria viver em harmonia com o macrocosmo.

 

A consciência dava ao ser humano a possibilidade de perceber a beleza da natureza e do sistema em que estava inserido. Tudo era uma coisa só, tudo estava interconectado. Nada escapava à imensa rede da vida, da qual o homem era apenas um fio. Tudo o que fizesse a esse tecido faria a si mesmo. A consciência diferenciava o homem dos outros seres, mas também dava a ele uma missão: ser o mantenedor, o guardião disso para as gerações seguintes. O ser humano não era dono da terra, ele fazia parte dela, não devia portanto explorar ou mandar na natureza, mas sim respeitá-la, reverenciá-la, aprender com ela para viver bem e em harmonia com os outros seres. O canto e a dança faziam parte do banquete que os homens ofereciam aos deuses para celebrarem a vida, que era considerada uma dádiva.

 

No entanto, o poder da consciência também nos oferecia a possibilidade de agirmos como substitutos de Deus ou, de viver de acordo com nossos interesses específicos e particulares. Essa pretensão era considerada em muitas tradições como a decadência do homem, pois isso significaria uma desarmonia do equilíbrio cósmico, um rompimento com as potências que regem o Universo e a nós mesmos, representadas pelas divindades e arquétipos.

 

No Egito antigo, no Oriente, nas tribos africanas e em todos povos e civilizações pré-Colombianas, os líderes eram seres humanos com uma cosmovisão, uma consciência superior que lhes dava a capacidade de ler e interpretar a ordem que agia como “pano de fundo” da vida. A função deles era transmitir essa visão de mundo para a sociedade e procurar fazer com que todos vivessem de acordo com essas Leis não escritas porque, tudo o que prosperava ou fracassava estava ligado à obediência ou infração delas. Sem essa cosmovisão as coisas tendiam a não ir tão bem. 

Vida Simples


Por volta dos 30 anos de idade optei por uma vida simples, tranquila e saudável, viver com o essencial e dedicar meu tempo a fazer as coisas que me pareciam significativas. As vilas operárias surgiram como locais ideais para morar nos grandes centros. Elas tem as vantagens de uma casa mas não as desvantagens. Há uma vida comunitária natural e genuína, um espírito inclusivo, diferente dos condomínios fortificados e exclusivos.

Esta casa compramos em 2005 no bairro do Horto no Rio de Janeiro, em frente ao Jardim Botânico. Na época era uma região desvalorizada, utilizada como cenário para filmar os núcleos pobres de novelas. Hoje é um dos locais mais valorizados da cidade, pois está dentro e ao mesmo tempo fora da agitação dela. Francisco aprendeu a andar de bicicleta e jogar futebol na rua. 

Este vídeo retrata um pouco esse estilo de vida.  





 

O Cuidado de Si – A Hermenêutica do Sujeito

Por Dado Salem
Julho 2021


O cuidado de si, a arte de viver uma vida significativa, foi tema de um ciclo de palestras de Michael Foucault em Paris em 1982.



Se um gênio aparecesse agora, na minha frente, e oferecesse a possibilidade de fazer uma viagem no tempo, eu escolheria ir para quarta-feira, dia 6 de janeiro de 1982 em Paris e ficar por lá até 24 de março. Foi quando aconteceram as 12 conferências de Michel Foucault no College de France, chamadas Hermenêutica do Sujeito.

Como parte de seu contrato com esta instituição, Foucault tinha que apresentar, todos os anos, o resultado de seus estudos por meio de 26 horas de aulas abertas. Num anfiteatro para 300 pessoas, se amontoavam cerca de 500 estudantes, professores, curiosos e pesquisadores, que vinham de vários países para ouvir o filósofo. Ao entrar na sala, Foucault, como um acrobata, precisava saltar por cima das pessoas para chegar à mesa, onde ainda teria que abrir espaço entre dezenas de gravadores dos estudantes, para ajeitar suas coisas e organizar seus papéis. Foucault reclamava da situação e da pouca possibilidade de troca com a plateia, por conta do formato estabelecido para a conferência. 

O que ele apresentava nessas palestras era um esboço do que depois seria transformado em livro. Neste caso, o conteúdo foi resumido num capítulo do livro O cuidado de si.

Por trás do título enigmático Hermenêutica do Sujeito, Foucault abordou um tema fundamental na antiguidade clássica: o autoconhecimento, traduzido pela famosa frase "conhece a ti mesmo". O filósofo se concentrou principalmente nas práticas que uma pessoa deveria adotar no seu cotidiano para atingir esse objetivo e desenvolver seus potenciais.

O vira-latas e a revolução da Sociedade em Rede

Por Dado Salem
Junho 2021


O vira-latas é o canivete suiço dos cachorros, pau pra toda obra, jack of all trades como dizem os norte-americanos. Criados na natureza urbana, são os lobos do asfalto. De fome não morrem. Sua natureza versátil, múltipla, os faz saber exatamente onde encontrar o que precisam e se reproduzem a valer. A adaptabilidade os torna capazes de sobreviver em realidades distintas.

Em contrapartida, os cães de raça – especialistas em determinadas funções – costumam ser caros, dependentes e ter saúde mais frágil. Isso significa que, se forem tirados de seu ambiente protegido e previsível, se não recuperam sua natureza essencial, é improvável que sobrevivam.

Na transição da Sociedade Industrial, estável e conhecida, para o mundo incerto e cambiante da Sociedade em Rede, diplomas e especializações têm a mesma utilidade que um pedigree para um cão de raça que foi abandonado pelo seu dono e posto na rua.

Na Sociedade em Rede estamos sempre em contato com coisas que não temos domínio. Quando nos apropriamos de um ambiente e achamos que estamos no controle, é justamente quando não podemos relaxar, porque o que é tendência agora, amanhã já está velho. Não há garantia de que o que está funcionando continuará. São várias redes com linguagens diferentes que estão aparecendo… e morrendo. É tudo muito rápido, instável, volátil. A cada dia há uma oportunidade diferente ou nova. 

Escrevendo um currículo

Já escrevi uma centena de currículos com meus clientes. Uma das maiores dificuldades é a linguagem corporativa. Ela consegue tirar toda riqueza e personalidade de um indivíduo, aquilo que o torna quem é. O achatamento do caráter numa folha de papel. Nada mais duro, frio e sem vida que um currículo. É uma pena que essa característica ultrapassada da Sociedade Industrial, que procura encaixotar as pessoas, ainda perdure nas empresas e até mesmo naquelas que se dizem inovadoras. Funciona bem para descrever máquinas, não pessoas.  

A poetisa e ensaísta polonesa Wislawa Szymborska, vencedora do prêmio Nobel de Literatura, captou isso bem no poema que chamou de Escrevendo um currículo.



Escrevendo um currículo
Por Wislawa Szymborska


O que precisa ser feito?
Preencher a ficha de inscrição
e anexar um currículo.

Mesmo que a vida seja longa
o currículo tem que ser curto.

Obrigatória a concisão e seleção dos fatos.
As paisagens são substituídas por endereços,
memórias trêmulas dão lugar a datas inabaláveis.

De todos os seus amores mencione apenas o casamento,
de todos os seus filhos, apenas aqueles que nasceram.

Quem conhece você conta mais do que quem você conhece.
Viagens somente se forem feitas no exterior.
Associações em quê, mas sem por quê.
Honras, mas não como foram conquistadas.

A trágica correlação entre conflitos e desastres

Por Dado Salem
Março 2021

No momento em que estamos vivendo o pico da Pandemia no Brasil, vendo que poderíamos ter evitado essa situação mas que o conflito político impediu uma ação coordenada dos governos, multiplicando exponencialmente o número de mortos, fico preocupado com nosso futuro diante das mudanças climáticas que virão. 


Desastres não são decorrentes de acidentes naturais.

Todos os anos vemos acontecer terremotos, furacões, secas, incêndios, vulcões, tsunamis, enchentes, etc. Mas esses eventos naturais, por mais terriveis que sejam, não costumam causar desastres.

Desastres são eventos calamitosos que causam uma ruptura no funcionamento de uma sociedade gerando graves perdas humanas, econômicas, ambientais, etc. e que excedem a capacidade da comunidade resolver sozinha, precisando recorrer ao auxílio externo. A explosão no porto do Líbano é um exemplo, o rompimento da barragem de Mariana é outro recente no Brasil.   

Em geral, quando há um plano de mitigação de riscos, os impactos de acidentes naturais tendem a ser minimizados. Esses eventos só se tornam desastres quando pessoas e o ambiente estão expostas a riscos e os organismos responsáveis e governos negligenciam ou não agem coordenadamente. Aí o resultado tende a ser devastador, multiplicando o número de mortos e gerando graves consequências sociais, econômicas e ambientais. Ou seja, embora muitas vezes desastres tenham causas naturais, eles são resultado da ação humana, ou da sua inação*.

Conflitos políticos são causadores de desastres.

Conflitos acontecem quando dois ou mais grupos não se escutam, não encontram uma maneira construtiva de resolver suas diferenças e atuam no intuito de prejudicar o outro para atingir seus objetivos.

Num país políticamente estável é mais provável que se encontre pacificamente maneiras de resolver problemas e mitigar riscos de acidentes naturais. No entanto, num país onde há conflitos políticos deflagrados e se coloca interesses pessoais e partidários acima do interesse comum, uma ação coordenada é práticamente impossível, o que aumenta muito a probabilidade de ocorrerem desastres. 

A sabedoria dos antigos

por Dado Salem
Jan 2021


Os mitos, vistos hoje como sinônimo de mentira ou histórias para divertir as crianças, contem um profundo conhecimento e grande sabedoria formados por milhares de anos de experiência e observação do funcionamento da vida.

Francis Bacon, a quem se atribui a criação do método científico – o selo de autenticidade que comprova o que consideramos “verdade” no mundo contemporâneo, reconheceu a utilidade desse conhecimento arcaico: “não posso deixar de atribuir um alto valor para a mitologia antiga […] e todo homem, de qualquer erudição, deve prontamente permitir que este método de instrução seja grave, sóbrio ou extremamente útil, e às vezes necessário nas ciências, pois abre uma passagem fácil e familiar para o entendimento humano”.

Na mitologia antiga, a divindade que considero mais importante de ser conhecida e observada é Nemesis, a Justiça primitiva. Venerada por todos mas especialmente temida pelos ricos, poderosos e afortunados, essa deusa era, segundo algumas versões, filha do titã Oceano e da deusa Nix (a noite). Por esse motivo Nemesis agia sem ser percebida, de maneira inconsciente e tinha ao seu lado a inconstância, as mudanças, a imprevisibilidade e as adversidades da vida, que utilizava para castigar aqueles que ultrapassavam o métron, os limites pessoais, e cometiam um descomedimento errando pelo excesso.

Considerada implacável e impiedosa, Nemesis foi amplamente utilizada nas tragédias gregas como a divindade que daria ao protagonista descuidado aquilo que lhe era devido. No mito de Narciso por exemplo, um jovem bonito mas arrogante que desprezava os outros, Nemesis o levou ao lago onde se apaixonou por sua própria imagem e lá morreu. Na Guerra de Troia, Aquiles o principal gerreiro grego, foi punido pelo mesmo princípio por mutilar o corpo de seu arqui inimigo Heitor.