Os Poetas e a Leitura da Realidade

por Dado Salem


“Só é poeta o homem que possui a faculdade de ver os seres espirituais que vivem e brincam em torno dele.” Nietzsche

O estudo comparado de mitos indica que houve, logo após a pré-história, uma visão ética comum em toda a humanidade: O ser humano era considerado um microcosmo e deveria viver em harmonia com o macrocosmo.

 

A consciência dava ao ser humano a possibilidade de perceber a beleza da natureza e do sistema em que estava inserido. Tudo era uma coisa só, tudo estava interconectado. Nada escapava à imensa rede da vida, da qual o homem era apenas um fio. Tudo o que fizesse a esse tecido faria a si mesmo. A consciência diferenciava o homem dos outros seres, mas também dava a ele uma missão: ser o mantenedor, o guardião disso para as gerações seguintes. O ser humano não era dono da terra, ele fazia parte dela, não devia portanto explorar ou mandar na natureza, mas sim respeitá-la, reverenciá-la, aprender com ela para viver bem e em harmonia com os outros seres. O canto e a dança faziam parte do banquete que os homens ofereciam aos deuses para celebrarem a vida, que era considerada uma dádiva.

 

No entanto, o poder da consciência também nos oferecia a possibilidade de agirmos como substitutos de Deus ou, de viver de acordo com nossos interesses específicos e particulares. Essa pretensão era considerada em muitas tradições como a decadência do homem, pois isso significaria uma desarmonia do equilíbrio cósmico, um rompimento com as potências que regem o Universo e a nós mesmos, representadas pelas divindades e arquétipos.

 

No Egito antigo, no Oriente, nas tribos africanas e em todos povos e civilizações pré-Colombianas, os líderes eram seres humanos com uma cosmovisão, uma consciência superior que lhes dava a capacidade de ler e interpretar a ordem que agia como “pano de fundo” da vida. A função deles era transmitir essa visão de mundo para a sociedade e procurar fazer com que todos vivessem de acordo com essas Leis não escritas porque, tudo o que prosperava ou fracassava estava ligado à obediência ou infração delas. Sem essa cosmovisão as coisas tendiam a não ir tão bem. 

 

No entanto, na Hélade (Grécia arcaica), a invasão dórica ocorrida entre os séculos XII e VIII a.C. destruiu definitivamente aquele sistema da realeza divina. Sobreviveram, contudo, alguns pequenos reinos agrícolas que mantiveram fragmentos da cultura arcaica. Nesse novo período, conhecido como Homérico, os poetas tinham a função de recuperar a memória daquela visão de mundo, reunificando os homens aos deuses e à natureza. Os poetas eram pensadores religiosos, verdadeiros interpretes dos deuses e por isso ocupavam posição igual ou superior aos basileus (reis que não tinham função sacerdotal).

 

Os poetas eram possuídos pelas Musas (filhas de Zeus e Mnemosyne - Memória), potências divinas que tinham o poder de revelar os princípios estruturantes da vida. A palavra pronunciada pelo poeta era dotada de vidência, dizia, segundo Hesíodo (2003), “o presente, o futuro, e o passado”, ou seja, tratava-se de uma voz imperecível que transmitia coisas eternas e por isso era considerada a pura expressão da Verdade, a Alétheia. Como estava ligada à Memória, a oposição da Verdade (Alethéia) não era apenas a mentira ou a falsidade, mas principalmente o Esquecimento (Léthe). Sendo assim, os homens comuns eram ditos “esquecidos”, ao passo que os poetas eram conhecidos como “Mestres da Verdade”.

 

O ser humano que conseguia recuperar a memória dessa época ancestral, em que os homens viviam em perfeita harmonia com a natureza (interna e externa, micro e macro-cósmica), era considerado um homem perfeito, divinizado, pois agia de acordo com os deuses, e suas obras, por estarem de acordo com a ordem cósmica, eram consideradas belas e imperecíveis. Na Grécia arcaica, esse homem era um poietés (criador) e seu ato poiésis (criação).

 

A importância que se dava à Memória estava também ligada à Teoria da Reminiscência. Segundo essa visão, todo ser humano carregava em germe na sua alma, uma missão a realizar, uma personalidade celeste. Alinhar as pretensões pessoais com esse desígnio, que estava indissoluvelmente associado ao coletivo e ao plano cósmico, era a meta básica de todo trabalho de desenvolvimento individual. Era a Memória que ajudaria o indivíduo encontrar a sua natureza originalEssa potência divina fazia parte de um movimento instintivo em direção à essência do ser, bastante semelhante ao processo de individuação descrito por C. G. Jung. 

 

O estreito vínculo dos poetas com a Memória fazia deles, acima de tudo, grandes educadores. Dedicavam-se a despertar o indivíduo (mito platônico da caverna), sintonizando-os aos desígnios de suas almas e orientando-os na busca da virtude.

 

O ritual milenar presidido pelos poetas era uma cerimônia festiva e ao mesmo tempo religiosa e mágica. Nesses encontros, os poetas, exímios criadores de metáforas, transmitiam conhecimentos adquiridos milênios antes do surgimento da escrita. Por meio dos mitos, descreviam o modus operandi das leis da natureza, da relação entre elas e delas com os homens. Um exemplo dessa prática milenar que foi preservado pela nossa cultura foi o de Cristo, que ensinava por meio de parábolas. Essa era a forma de educação na antiguidade. Ao invés de conceitos, os poetas ofereciam estórias e imagens metafóricas.

 

A visão mítica, por não se fundamentar na lógica e na razão para conhecer o mundo, tem sido atacada no ocidente desde o século VII a.C. Ainda hoje é considerada um estágio preliminar de consciência ou uma concepção infantil da realidade. A palavra mito se tornou sinônimo de mentira, de estórias que não correspondem à realidade. No entanto, o fato de muitos desses conceitos continuarem válidos até hoje e de que boa parte do que a psicologia contemporânea sabe a respeito de arquétipos ter sido aprendido por meio da mitologia, é uma prova do sucesso que os poetas tiveram em usar o imaginário em suas interpretações e da imperecibilidade dos conhecimentos que adquiriram.

 

Mas chegou o momento em que os poetas também perderam a memória. No século VI a.C. Simônides transformou a poesia em negócio. Passou a criar poemas que enalteciam, não mais os deuses, mas sim os ricos e poderosos em troca de dinheiro. Os poetas perderam sua importância e passaram a ser duramente criticados. Alguns mudaram de atividade. Segundo Aristóteles (2003), os verdadeiros poetas passaram a se dedicar a outras formas artísticas, como o teatro por exemplo. Continuaram, desse modo, a educar e a buscar a verdade universal, como passaram também a fazer os filósofos. Sidney (2002) e Detienne (1989), entendem que os próprios filósofos gregos eram poetas disfarçados, e que a beleza de suas obras vem, em grande parte, da poesia nelas contida.

 

Mais tarde, em Roma, muitos poetas ainda eram respeitados pela sua capacidade de enxergar o invisível. Eram chamados de vates, que significa adivinho, profeta, visionário.

 

Outras culturas também procuraram desenvolver as faculdades poéticas. Um exemplo são os filósofos e intelectuais árabes, conhecidos como Sufistas, que anunciaram a possibilidade de obter conhecimentos imperecíveis, por meio da imaginação. Segundo Ibn Arabi, para se chegar à sabedoria perfeita, seria necessário enxergar com os dois olhos: o da razão e o do imaginário. Essa era considerada a base da sabedoria dos profetas e da realização plena das potencialidades humanas.

 

No renascimento, os poetas continuaram sendo glorificados por sua capacidade de acesso ao mundo das essências, como podemos notar em Shakespeare, na primeira cena do quinto ato de Sonho de uma Noite de Verão:

 

O olho do poeta, num delírio excelso, passa da terra ao céu, do céu à terra, e como a fantasia dá relevo a coisas até então desconhecidas, a pena do poeta lhes dá forma, e a essa coisa nenhuma aérea e vácua empresta nome e fixa lugar certo. (SHAKESPEARE, 1952, p.217).

 

Foi apenas nesse período (Renascimento) que pintores e escultores se intelectualizaram e passaram a manifestar uma visão penetrante da realidade em suas obras, conseguindo sair da condição de artesãos e, finalmente, se elevar ao nível artístico dos poetas. Antes disso, não passavam de simples operários exercendo funções mecânicas.

 

Como podemos notar, há milênios o olhar do poeta, ou do artista como estamos habituados a dizer, é considerado uma visão mais abrangente da realidade pois ele possui a capacidade de unir o concreto e imaginário, o consciente e o inconsciente. A afirmação do surrealista Breton (1997, p.76), de que existe um ponto na mente em que “vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, comunicável e incomunicável, alto e baixo, deixam de ser percebidos em termos contraditórios”, é um bom exemplo desse jeito de perceber o mundo. 

 

O filósofo romeno Mircea Eliade (1996), confirma essa idéia considerando a linguagem simbólica como mais eficiente que qualquer outro meio de conhecimento para chegar aos níveis profundos da realidade. Cassirrer (1997 p.236), igualmente, defende no capítulo nono de seu Ensaio Sobre o Homem, que a poesia é a chave da realidade. Para ele, “um dos maiores triunfos da arte é fazer com que vejamos as coisas corriqueiras em sua verdadeira forma e sob sua verdadeira luz”.

 

Se prestarmos atenção nas declarações de alguns artistas, teremos a  confirmação da existência de uma forma de perceber a realidade, mais próxima do inconsciente, que vai além da lógica e da razão.

 

Picasso, com sua conhecida irreverência, afirmou: 

 

mas o que é isso, realidade objetiva? Ela não vale nem para o vestuário, nem para os tipos humanos, para nada [...] a realidade objetiva é algo que se deve dobrar cuidadosamente como se dobra um lençol e encerrá-la num armário de uma vez para sempre. (PICASSO apud BRASSAÏ, 2000, p. 198).

 

Para Octávio Paz (2003 p.26), “o poema é uma via de acesso ao tempo puro, uma imersão nas águas originais da existência”. Sua opinião é semelhante à de Kandinsky, para quem as obras de arte, conduzem o homem para além das aparências, “sob a pele da natureza, à sua essência, ao seu conteúdo”. (KANDINSKY, 2000, p.229). Ou seja, a arte nos afasta do mundo concreto, nos eleva ao plano imaginário e nos traz de volta à realidade com um outro entendimento dela, muito mais rico e profundo.


Toda verdadeira obra de arte continua válida e não envelhece com o tempo. Isso acontece porque o artista tem a capacidade de apresentar, de forma visível e dizível, aspectos imutáveis da vida. Elas tocam, conforme o antigo ideal grego, a eternidade. Quando Sófocles escreve Édipo quatrocentos e tantos anos antes de Cristo e esse texto continua perfeito até hoje; quando As Nuvens de Aristófanes é representada em plena era da cibernética e os espectadores reconhecem os personagens no seu cotidiano; quando Stevenson desperta de um sonho com a novela dr.Jeckle e mr.Hyde descrevendo o lado sombrio da alma humana; quando Chaplin filma Tempos Modernos expondo as mazelas da industrialização, percebemos o alcance da visão do artista. Por sua consciência diferenciada, são capazes de criar obras que nos emocionam e tocam nosso coração, por isso, ficam gravadas na memória. 

 

Se a visão poética perdeu, gradualmente ao longo da história, a aceitação como instrumento de construção de conhecimento, especialmente a partir do século XVII em que o termo poético passou a ser sinônimo de algo fantasioso e distante da realidade, é porque fomos deixando de entender de poesia ou porque já, há muito tempo, não se faz poetas como antigamente.

 

O uso da poesia como ciência justifica-se, fundamentalmente, pela sua capacidade de penetração no mundo não aparente para chegar a uma melhor compreensão da natureza das coisas que pretendemos investigar. Encerro esse argumento com um fragmento do filósofo e ensaísta Roland Barthes: 

 

Se, por não sei que excesso do socialismo ou da barbárie, todas as nossas disciplinas, devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a literatura quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. (BARTHES, 1989, p.18).

 


Bibliografia:


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