O Bem-Estar na Civilização

Por Dado Salem
Junho 2025



Freud, especialmente em O Mal-Estar na Civilização, parte da premissa de que o ser humano possui impulsos destrutivos (como a pulsão de morte) e que a civilização existe para reprimir esses impulsos, criando uma tensão inevitável entre indivíduo e sociedade. A civilização, nesse modelo, é um mal necessário, um instrumento de contenção que nos impede de nos autodestruir, mas que também nos adoece psíquicamente.

Penso o oposto. O ser humano, em sua essência, não é mau nem destrutivo, e muito menos acredito que a civilização tenha sido criada com a função de conter essa suposta tendência. Vejo o ser humano como uma célula dentro de um organismo vivo, que é a sociedade. Cada um tem uma função nesse coletivo, que por sua vez valoriza a individualidade porque precisa da diversidade para seu funcionamento.

Dessa forma, o coletivo contribui para o indivíduo e vice-versa. Essa é a civilização na sua origem, não como uma estrutura de controle para conter a maldade e a destrutividade, mas como um organismo vivo que estimula e se retroalimenta por meio de seus indivíduos. Nessa visão, cada um tem uma função singular e indispensável.

Essa concepção da sociedade como organismo vivo já foi praticada por diversas civilizações ancestrais. Muitos povos originários da África e das Américas viram o ser humano como parte inseparável da natureza, cuja saúde depende da harmonia com o todo. A cultura Dagara no oeste da África, por exemplo, pratica até hoje um ritual multimilenar de iniciação para os jovens no qual cada um precisa identificar sua missão e viver de acordo com sua verdadeira natureza para que possam ser integrados à comunidade. Na Grécia arcaica, a formação dos jovens (Paidéia) também exigia o autoconhecimento e a resposta das perguntas - quem sou eu? o que vim fazer aqui? como posso contribuir para a Polis? - para que se tornassem cidadãos. O Taoísmo, na China, ensina que o caminho do ser humano é seguir o fluxo natural da vida, e não lutar contra sua própria natureza. A idéia do dharma na Índia, onde cada um tem sua função singular, era celebrado como parte de um grande organismo. 

Essas culturas não partem da ideia de que o ser humano é essencialmente mau e destrutivo, mas de que ele se desequilibra quando perde sua conexão. E a civilização, longe de ser um sistema de contenção, é um campo fértil para o florescimento e que não só estimula, mas chega até a exigir do indivíduo essa conexão.

O mal não está portanto na essência do ser humano. Ele é uma disfunção. O mal é uma doença, como nossa própria linguagem demonstra na associação entre essas palavras. Por exemplo, quando dizemos que alguém está mal, passando mal ou sofrendo de algum mal, significa que essa pessoa está doente. Dessa forma, uma pessoa má é, na verdade, uma pessoa doente, que está em desarmonia com o coletivo e consigo mesma, que se desviou da sua rota.

Comportamentos desagregadores precisam ser tratados para proteger o coletivo, assim como os anticorpos cuidam de uma célula doente, não com punição, mas com a intenção de restaurar o equilíbrio. Combater doenças não é o motivo da existência de um organismo.

Um organismo existe para viver, para se expressar, para realizar seu potencial em harmonia com o ambiente que o cerca. Sua função não é apenas sobreviver, mas florescer, criar, sentir, transformar, interagir e se realizar.

Do mesmo modo, a civilização (entendida como um corpo coletivo vivo) não existe para conter o mal, mas para cultivar o bem comum. Ela se realiza quando permite e estimula que cada indivíduo manifeste sua singularidade em benefício do todo. Sua força está na cooperação, não no controle. Na relação, não na repressão.

Quando cada célula humana encontra seu lugar, sua função, sua forma de contribuir, o organismo social vive com saúde, criatividade e sentido. O mal, então, não precisa ser combatido com medo e repressão, mas compreendido como sinal de desequilíbrio. E o cuidado se torna o eixo central, não o castigo.

Uma civilização saudável é aquela que se organiza em torno do princípio da expressão, não da contenção. Ela existe para favorecer o florescimento da vida em todas as suas formas, como um espelho da natureza.

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