Outubro 2025
Brasil Cyberpunk
Noite em São Paulo. Fachadas de prédios e muros exibem grafites e pixações. Traços verticais, códigos quase hieroglíficos, marcas da contracultura urbana. Um entregador de aplicativo pedala no escuro. O asfalto está sujo e úmido. A rota é longa, mas ele não discute. Sabe que, se questionar, perderá pontos e cairá no ranking.
No celular do entregador, notificações não param de chegar. Propagandas de comida rápida, ofertas de crédito instantâneo, alertas de desempenho. Ao passar por uma câmera do sistema municipal de vigilância, seu rosto é registrado. Ele segue até Higienópolis. Uma torre espelhada, lobby cheio de sensores biométricos. Ele não pode entrar. A portaria inteligente não reconhece entregadores como usuários do espaço. Deixa a encomenda num armário digital de aço e recebe a mensagem automática. “Entrega concluída. R$ 4,57 creditados".
Na Zona Sul, um ônibus circula com menos passageiros que de costume. Os assentos próximos às janelas estão vazios. O medo tomou conta depois dos últimos ataques. Segundo relatos, um morador de rua teria recebido dinheiro de um homem não identificado para atirar pedras contra os veículos. O impacto estilhaçou os vidros e feriu passageiros. Segundo rumores, os atentados fazem parte de uma disputa entre empresas rivais de transporte.
Essas cenas, que parecem saídas de um filme distópico, são a vida real de milhões de pessoas. Personagens marginais, anti-heróis involuntários que buscam a sobrevivência diariamente. Desigualdade, exploração, exclusão. Vigilância pública e privada constante e condomínios fortificados. Mega corporações controlando a informação. Políticos corruptos. Máfias infiltradas em todos os setores. Saúde, educação e transporte precários. O Brasil Cyberpunk não é ficção científica, é o nosso presente.
Nos últimos anos, o termo Cyberpunk deixou de ser um gênero de ficção científica caracterizado por Blade Runner, Matrix e Edgerunners para se tornar uma forma de enxergar e interpretar a sociedade atual nas grandes cidades. Um influenciador brasileiro conhecido como Baka Gaijin, que morou no Japão e recentemente voltou ao Brasil, percorreu as ruas de São Paulo e afirmou que talvez essa seja uma das cidades mais Cyberpunk do mundo. Sua observação mostra uma realidade que já está diante de nós. O futuro imaginado pelo gênero não é mais ficção científica, é cotidiano.
O termo Punk apareceu na época de Shakespeare, significando “prostituta”. Ao longo dos séculos, passou a carregar sentidos de marginalidade, rebeldia e subversão. Nos anos 1980, com o movimento Punk europeu, se consolidou como expressão de resistência contra um sistema considerado corrupto, representado por jovens de roupas de couro, cabelos coloridos e atitude agressiva diante do establishment. No Cyberpunk, esse "punk" traz a dimensão marginal e rebelde, daquilo que não se encaixa, do submundo que floresce justamente da opressão do Sistema em que vivemos.
A palavra Cyber remete às pesquisas da Cibernética, um campo científico interdisciplinar que surgiu no final dos anos 1940 reunindo grandes mestres de diversas áreas da ciência como matemáticos, engenheiros, filósofos, biólogos, sociólogos, físicos, neurocientistas… em torno da comunicação entre máquinas e seres humanos. Da Cibernética nasceu o mundo contemporâneo. Desses encontros emergiram a teoria dos sistemas, os softwares, a internet, a inteligência artificial, e a noção de que a mente humana poderia ser replicada ou substituída por circuitos eletrônicos.
O Cyberpunk, traz portanto, além dessa presença da tecnologia no cotidiano, a fusão do ser humano com a máquina, o Pós-Humanismo, e uma vida conectada, vigiada e controlada.
Becos, muros pichados… a paisagem de São Paulo e das favelas Cariocas traduzem com precisão a atmosfera Cyberpunk. O trabalho de Baka Gaijin, autodeclarado “sommelier de becos”, mostra como as metrópoles brasileiras se aproximam visualmente e socialmente da ficção distópica. No Brasil, a desigualdade é o que gera e mantém viva essa atmosfera. As grandes corporações, principalmente as Big Techs, controlam dados e comportamentos sociais, enquanto milhões permanecem excluídos. O crime organizado, por sua vez, também opera nesse espaço híbrido, tanto nas ruas quanto no ciberespaço, se misturando com as estruturas políticas e institucionais. O resultado é uma sociedade onde não se distingue claramente quem detém o poder. Corporações, governos, facções, algoritmos?
Outro exemplo evidente dessa realidade é o dinheiro. Se o Cyberpunk sempre imaginou um submundo financeiro, ele existe e está cada vez mais forte por meio do Bitcoin. Nascido nos subterrâneos digitais, criado por alguém cujo nome verdadeiro nunca foi revelado, o Bitcoin começou valendo alguns centavos e chegou recentemente a ultrapassar a casa dos 100 mil dólares (dizem que em breve vai valer mais de um milhão). O Bitcoin talvez seja a moeda que mais se valorizou em toda a história, e hoje até governos começaram a comprá-la. É a moeda Cyberpunk por excelência. Sem Estado, sem Banco Central, sem fronteiras, anônima, fruto de códigos matemáticos e da desconfiança em relação às instituições financeiras tradicionais.
No Brasil, a narrativa Cyberpunk se mistura à política e à justiça. Rumores sugerem conexões entre crime organizado, agentes públicos e diversas instâncias dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Essas histórias ecoam a percepção social de que interesses criminosos e corporativos ocupam espaços que deveriam defender a justiça e a ordem.
Como em qualquer cenário Cyberpunk, o cidadão comum vive em meio a uma névoa, uma noite eterna onde não se sabe exatamente quem serve a quem, nem onde termina o Estado e começa os interesses privados, ou onde acaba a lei e começam as máfias.
A ficção Cyberpunk descreve elites protegidas por muros e tecnologias inacessíveis ao resto da população. Essa é também a realidade dos grandes bilionários do nosso tempo. Os donos das Big Techs, que ajudaram a construir a sociedade digital, estão comprando e construindo bunkers ao redor do mundo em lugares remotos como Alasca e Nova Zelândia.
Eles se preparam para catástrofes econômicas, sociais, ambientais, pandemias, apocalipse nuclear ou até mesmo um asteroide que poderia atingir a Terra. Paradoxalmente, são pessoas que não permitem que seus próprios filhos usem os dispositivos que elas mesmas criaram, gestos que confessam que a realidade que ajudaram a construir é insustentável. E ao invés de tentar ajudar a resolver os dilemas da humanidade, buscam escapar deles em bunkers subterrâneos e em sonhos de colonizar outros planetas.
Poucas imagens são mais Cyberpunk do que elites se isolando em condomínios fortaleza paradisíacos ou buscando cidadanias alternativas, enquanto o resto da população se debate na precariedade das ruas.
Cyberpunk é ficção e estética, mas sobretudo, é uma forma de antropologia poética. Literatura, cinema, quadrinhos e games projetaram futuros distópicos que hoje parecem retratos do cotidiano. A ficção científica, nesse caso, atua como instrumento de análise social. Ao criar mundos imaginários, denuncia desigualdades reais, critica sistemas de poder e antecipa transformações.
Não é por acaso que filósofos e cientistas sociais se debruçam nesse gênero, mostrando como a arte e ciência se misturam. O Cyberpunk é uma expressão híbrida, tanto uma narrativa artística quanto uma análise científica, que oferece mais compreensão da sociedade do que muitos relatórios técnicos.
A experiência estética de Baka Gaijin em seus vídeos no YouTube se aproxima disso. Suas caminhadas nas noites chuvosas de São Paulo e Tóquio são meditações filosóficas. Ele reflete diante das ruas iluminadas por neon e grafites como Rousseau refletia em suas Meditações de um Caminhante Solitário. O filósofo francês caminhava pelos bosques, Baka Gaijin caminha pelos becos. É a filosofia em movimento.
Com mais de um milhão de seguidores, Baka Gaijin transformou o ato de andar em reflexão compartilhada. Mostra que a filosofia, para além dos livros acadêmicos, pode brotar do simples gesto de caminhar, observar e refletir. É uma figura relevante da cultura contemporânea, um Rousseau Cyberpunk.
No Brasil, e especialmente nas nossas grandes metrópoles, já vivemos a condição Cyberpunk. Desigualdade gritante, criminalidade sofisticada, política permeada por interesses obscuros. O Cyberpunk é uma chave para leitura da realidade. O futuro chegou conforme previsto: alta tecnologia convivendo com a baixa qualidade de vida.
Buckle your seatbelt Dorothy, 'cause Kansas is going bye bye!
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