“Príncipe, é verdade que o senhor disse certa vez que a beleza salvará o mundo? Senhores – gritou alto para todos – o príncipe afirma que a beleza salvará o mundo! […] Qual é a beleza que vai salvar o mundo? […] O príncipe o examinou atentamente e não lhe respondeu”.
Esse trecho enigmático de O idiota de Dostoiévsky merece uma reflexão e ao menos a tentativa de responder a pergunta que ficou no ar.
Principe Michkin, o protagonista, representa um sujeito puro e lúcido, lançado num mundo corrompido. Epilético, sensível, inocente, Míchkin retorna para a Rússia depois de anos de tratamento na Suíça. Diante da crueldade do meio social que o cerca, é chamado de “idiota”.
“Salvar o mundo”, nesse contexto, não é um ato heroico no sentido de um trabalho revolucionário e transformador do coletivo, mas um processo de cura da alma individual. Dostoiévsky transmite a ideia de que vamos de mal a pior e que o mundo não será salvo por revoluções políticas, ideológicas, pela ciência ou pela razão. Mas pela transformação individual. Ao nos curarmos do egoísmo, salvamos um pedaço do mundo, e os pedaços somados transformam o todo.
A beleza tem um poder forte de atração. Quando somos tocados por ela, faz vibrar o que há de mais divino em nós. A beleza engana o intelecto e toca o coração onde a razão falha. Por exemplo:
Ao atravessar um parque caminhando para uma reunião de trabalho, um homem ouve um jardineiro cantar: Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela, será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela? […] Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela, passando pelo regimento, ela faz requebrar a sentinela.
O homem caminha distraído, utilitariamente ao seu compromisso, até que a voz alegre do jardineiro rompe a hipnose da rotina e algo nele desperta. Nesse instante, algo acontece. Ele sai de seu automático e um entusiasmo inocente brota na sua consciência. A beleza vibra na voz do jardineiro e na imagem da morena dançando com o chocalho amarrado na canela. O regimento, o exército, símbolo da ordem, da disciplina e da razão, é abalado pela passagem do corpo vivo, livre, feminino, que dança ao ritmo do chocalho. O chocalho, o maracá, assim como o tambor, é um instrumento sagrado que abre as portas da percepção e facilita o contato com o mundo espiritual.
Ao atravessar um parque caminhando para uma reunião de trabalho, um homem ouve um jardineiro cantar: Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela, será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela? […] Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela, passando pelo regimento, ela faz requebrar a sentinela.
O homem caminha distraído, utilitariamente ao seu compromisso, até que a voz alegre do jardineiro rompe a hipnose da rotina e algo nele desperta. Nesse instante, algo acontece. Ele sai de seu automático e um entusiasmo inocente brota na sua consciência. A beleza vibra na voz do jardineiro e na imagem da morena dançando com o chocalho amarrado na canela. O regimento, o exército, símbolo da ordem, da disciplina e da razão, é abalado pela passagem do corpo vivo, livre, feminino, que dança ao ritmo do chocalho. O chocalho, o maracá, assim como o tambor, é um instrumento sagrado que abre as portas da percepção e facilita o contato com o mundo espiritual.
A morena de Angola não fala, ela simplesmente passa, e ao passar, seu movimento livre e natural dissolve a rigidez da sentinela. O homem armado, a razão guardiã do controle, é transformado, ainda que por um instante, em ser humano novamente, conectado com o todo.
O sagrado se manifesta na simplicidade do cotidiano. Cria um momento de harmonia entre o corpo e o espírito. O jardineiro, sem saber, se torna o mediador da graça, o ouvinte, sem esperar, experimenta o milagre da beleza.
Nesse instante de reconciliação, entre o homem, o jardineiro, o parque, a música, a morena, o chocalho e o requebrar da sentinela, saímos de nós mesmos e recordamos que somos parte de uma grande harmonia e o mundo volta a ser sentido como um todo vivo. A beleza revela a unidade perdida, nos devolve a inteireza, fazendo uma ponte entre o humano e o divino, o visível e o invisível, o consciente e o inconsciente.
Quando percebemos a beleza, seja numa música, na natureza, num gesto, nas coisas simples do cotidiano, sentimos algo familiar difícil de explicar, de colocar em palavras. Isso acontece porque esse reconhecimento não vem da razão, ele vem da alma. É como se, por um instante, o véu da separação caísse. A beleza tem essa capacidade, de romper nosso egoísmo e nos reconectar ao todo.
A beleza salvará o mundo porque só ela é capaz de nos fazer lembrar quem somos.
A beleza salvará o mundo porque só ela é capaz de nos fazer lembrar quem somos.
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