A beleza salvará o mundo

Por Dado Salem
Outubro 2025



“Príncipe, é verdade que o senhor disse certa vez que a beleza salvará o mundo? Senhores – gritou alto para todos – o príncipe afirma que a beleza salvará o mundo! […] Qual é a beleza que vai salvar o mundo? […] O príncipe o examinou atentamente e não lhe respondeu”.

Esse trecho enigmático de O idiota de Dostoiévsky merece uma reflexão e ao menos a tentativa de responder a pergunta que ficou no ar.

Principe Michkin, o protagonista, representa um sujeito puro e lúcido, lançado num mundo corrompido. Epilético, sensível, ingênuo, Míchkin retorna à Rússia depois de anos de tratamento na Suíça. Diante da crueldade do meio social que o cerca, ele se torna um idiota aos olhos dos outros.

“Salvar o mundo”, nesse contexto, não é um ato heroico no sentido de um trabalho revolucionário e transformador do coletivo, mas um processo de cura da alma individual. Dostoiévsky transmite a ideia de que vamos de mal a pior e que o mundo não será salvo por revoluções políticas, ideológicas, pela ciência, pela razão ou por alguma instituição. Mas pela transformação individual. Ao nos curarmos do egoísmo, salvamos um pedaço do mundo, e os pedaços somados transformam o todo.

O egoísmo, para além do comportamento de quem pensa em si antes dos outros, é a raiz da alienação moderna, a crença de que somos uma entidade separada do todo e que o mundo é um objeto a ser usado.

A beleza tem um poder forte de atração, de encantamento. Quando somos tocados por ela, algo ressoa, faz vibrar o que há de mais divino em nós. A beleza engana o intelecto e toca o coração onde a razão falha. Por exemplo:

Ao atravessar um parque caminhando para uma reunião de trabalho, um homem ouve um jardineiro cantar: Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela, será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela? […] Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela, passando pelo regimento, ela faz requebrar a sentinela.

O homem caminha distraído, utilitariamente ao seu compromisso, até que a voz alegre do jardineiro rompe a hipnose da rotina e algo nele desperta. Nesse instante, algo acontece, ele para, sai do seu automático e um entusiasmo inocente brota na sua consciência. A beleza vibra na voz do jardineiro e na imagem da morena dançando com o chocalho amarrado na canela. O regimento, o exército, símbolo da ordem, da disciplina e da razão, é abalado pela passagem do corpo vivo, livre, feminino, que dança ao ritmo do chocalho. O chocalho, o maracá, assim como o tambor, é um instrumento sagrado que abre as portas da percepção e facilita o contato com o mundo espiritual.

A morena de Angola não fala, ela simplesmente passa, e ao passar, seu movimento livre e natural dissolve, por encantamento, a rigidez da sentinela. O homem armado, a razão guardiã do controle, é transformado, ainda que por um instante, em ser humano novamente conectado com um grande sistema vivo.

O sagrado se manifesta na simplicidade do cotidiano. Cria um momento de harmonia entre o corpo e o espírito. O jardineiro, sem saber, se torna o mediador da graça, o ouvinte, sem esperar, experimenta o milagre encantador da beleza.

Nesse instante de reconciliação, entre o homem, o jardineiro, o parque, a música, a morena, o chocalho e o requebrar da sentinela, saímos de nós mesmos e recordamos que somos parte de uma grande harmonia e o mundo volta a ser sentido como um todo vivo, porque voltamos a participar dele. A beleza revela a unidade perdida, nos devolve a inteireza, fazendo uma ponte entre o humano e o divino, o visível e o invisível, o consciente e o inconsciente, o espírito e a matéria.

Quando percebemos a beleza, seja numa música, na natureza, num gesto, nas coisas simples do cotidiano, sentimos algo familiar difícil de explicar ou de colocar em palavras, mas que transforma a realidade. Isso acontece porque esse reconhecimento não vem da razão, ele vem da alma. É como se, por um instante, o véu da separação caísse. A beleza tem essa capacidade, de romper nosso egoísmo e estabelecer um vínculo que nos reconecta ao todo. Ela não muda as coisas, mas muda o nosso jeito de ver.

A beleza salvará o mundo porque só ela é capaz de nos fazer lembrar quem somos.




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