Por Dado Salem
Setembro 2020
Eu ainda não me sentia muito bem trabalhando com grupos quando fui chamado para facilitar o encontro de uma equipe numa Multinacional. A primeira coisa que fiz foi convidar um psicólogo experiente para me acompanhar.
Sabia que nessas dinâmicas poderiam surgir coisas complicadas, inesperadas, não planejadas e principalmente das quais o grupo não tem consciência. O grande trabalho é saber lidar com os conteúdos que emergem.
Era um grupo de 9 executivos de múltiplas nacionalidades, muito produtivos e eficientes, espalhados pelos 5 continentes que se encontravam apenas uma vez ao ano para confraternizar. “O grupo vai bem, não temos problema algum”, brifou a executiva que contratou o trabalho. “Realizamos um encontro anual e gostaríamos de incluir um trabalho de Team Building”. O programa precisava ser conduzido em inglês.
Nunca gostei desse termo Team Building. Talvez pelo fato de um time ser uma coisa fechada e ver o outro como um inimigo, um adversário a ser batido. Numa organização isso pode ser perigoso, especialmente se não houver olhar para os outros interessados, stakeholders na linguagem corporativa.
Esses executivos eram compradores de um insumo fundamental para a Organização.
Neste evento realizamos uma série dinâmicas tradicionalmente utilizadas com grupos. Numa das últimas tarefas que meu amigo psicólogo propôs, fiquei um pouco preocupado, mas por algum motivo me faltou força para falar “não”. Intui que fosse dar merda, e deu.
Amarramos o grupo formando um bloco humano. Eles deveriam percorrer juntos um caminho numa sala grande. Nós cronometraríamos o tempo que o grupo levaria para completar o percurso. Eles poderiam repetir quantas vezes achassem necessário até atingirem uma marca que julgassem suficientemente boa.
Fizeram a primeira volta até que rápido para quem estava amarrado daquele jeito. Levaram um minuto e pouco. Como era um grupo competitivo, se propuseram a fazer mais uma volta e melhorar o tempo. Baixaram muito, uns 15 segundos. Não satisfeitos e acostumados com metas ambiciosas, decidiram diminuir ainda mais. É importante ressaltar que eles mesmos deveriam avaliar se o tempo estava bom ou não, e se desejavam tentar superar a marca. Nosso papel era simplesmente cronometrar e depois conversar a respeito da experiência.
Foi aí que aconteceu o inesperado. No meio da última volta alguém soltou um grito e o bloco humano parou. O diretor, chefe do grupo, quebrou a perna! Ficamos todos perplexos. Imediatamente nos prontificamos a leva-lo a um pronto socorro ortopédico. Depois de alguns minutos de confusão, meu amigo psicólogo providenciou um transporte e acompanhou o executivo ao hospital.
Fiquei ali com o grupo... Que situação! Eu sabia que meu papel como facilitador era lidar com o imponderável, com o que emerge, então sentamos em círculo para conversar sobre o ocorrido. Perguntei, “vocês associam esse acidente a algo que vivenciam nesse grupo?”
Depois de alguns segundos de silêncio uma mulher respondeu: “isso me faz lembrar um fato que vivemos recentemente” e contou que, como compradores de um insumo fundamental, trabalham em equipe e escala global para manter os preços dos fornecedores apertados e sob controle. Falou que o tal insumo custava USD100 e resolveram fazer um movimento coordenado para baixar a USD80. Tiveram sucesso. Decidiram então apertar mais, e conseguiram baixaram a USD70 e depois para USD60, trazendo resultados expressivos para a Organização. No entanto, sufocaram toda a cadeia de fornecedores e o resultado foi que diversas empresas ao redor do mundo “quebraram”, sobrando apenas algumas poucas indústrias e o preço do insumo acabou subindo para USD135! A semelhança simbólica dos fatos era evidente.
Depois de ouvir os comentários e percepções de todos, contribuí com minha observação. O grupo era sem dúvida muito eficiente e trabalhava bem em conjunto, no entanto, precisavam ter mais atenção aos seus limites e ao impacto que causam.
Foi quando um deles protestou, justamente um executivo indiano. Na época eu estava profundamente envolvido com a cultura da Índia, havia lido e feito um curso sobre o Mahabharata (texto sagrado indiano), especialmente sobre um livro chamado Bhagavad Gita segundo Gandhi, ministrado pelo Prof. Carlos Byington. Nutria grandes esperanças pela influência que os indianos poderiam ter no mundo. Mas o indiano, revoltado, falou olhando na minha direção: “Atenção com limites? Mas como? Fomos treinados e sempre cobrados para superar limites!!!!!”
O encontro foi encerrado com esse incômodo. O grupo que dizia que não tinha problemas foi colocado frente a frente com sua sombra. Espero que esse evento e o trágico desfecho tenha servido para alguma ampliação da consciência do grupo ou de algum daqueles indivíduos.
As empresas trabalham até hoje com metas ambiciosas. Se espelham em atletas e valorizam aqueles que sempre buscam superar limites, às vezes à custa da própria vida. Se esquecem que o planeta é finito, que as pessoas têm limitações. Desconhecem um valor chamado Justa Medida. A ambição e a ganância é que parecem infinitas.
Esse tipo de liderança e mentalidade nos colocaram na situação de degradação planetária e ética em que estamos. Não serão os mesmos que nos tirarão dela. É preciso um outro modelo mental.
Dado, muito oportuno o artigo. É um retrato da postura (por vezes inconsciente, como a história mostra) predatória das pessoas e das companhias. E de como isso é insustentável no longo prazo. Em nosso meio isso foi batizado "assédio moral corporativo". Traz consequências.
ResponderExcluirWilson, obrigado pelo comentário. É importante para ajudarmos a mudar esse comportamento destrutivo e insustentável.
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