Um dos casos mais interessantes e surpreendentes de mediação que atendi.

Foi em 2010 numa co-mediação com uma psicanalista argentina chamada Magdalena Ramos. Magdalena é uma figura emblemática, uma das grandes mestras da Psicologia de Família. Teve que sair fugida de seu país nos anos 1970 por conta da perseguição política. Uma perda para a Argentina, mas um ganho para o Brasil. Magdalena foi responsável por criar o primeiro programa de Psicanálise de Família na PUC-SP. Esse atendimento virou um artigo chamado – Mediação: um caso clínico e foi publicado no livro A violência doméstica e a cultura da paz

Escrevemos esse artigo pensando em fazer uma introdução simples e clara sobre o tema, pois na época ainda se confundia a palavra Mediação com Meditação. Em seguida relatamos nossa experiência.



Mediação: um caso clínico

Por Magdalena Ramos e Dado Salem


Histórico da Mediação

Antigamente o mediador tinha, a importante função de ajudar a recuperar a saúde física e psíquica das pessoas, re-estabelecendo a conexão entre o indivíduo e o cosmos. Era uma espécie de ponte (pontífice) que eliminava a separação entre os homens e os deuses, e trazia consciência às pessoas. Essa relação entre religião e mediação pode ser observada em várias tradições. Na cultura judaica por exemplo, até hoje os rabinos desempenham o papel de mediadores em diversos tipos de conflitos. Moore (1998) observou a mesma conexão em culturas islâmicas, hinduístas e budistas.

Diferentes práticas e modelos de mediação surgiram pelo mundo, mas todos com o mesmo princípio: re-aproximar o indivíduo do “outro”, seja este “outro” uma pessoa, um grupo, a sociedade ou o mundo.

A mediação como a entendemos hoje surgiu nos Estados Unidos na década de 1970. Teve uma divulgação muito rápida devido aos bons resultados atingidos e foi incorporada ao sistema legal americano. Em vários estados a mediação passou a ser um processo obrigatório sendo exigido como uma instância prévia antes de se poder abrir um processo judicial. Esta medida foi e continua sendo importante pois, em muitos casos, evita o desgaste e a morosidade inerentes aos processos jurídicos.

No final da década de 1970 a mediação teve o seu ingresso na Inglaterra. Em 1976 foi criado o Centro de Mediação Familiar, pioneiro na atuação da esfera familiar. Uma característica deste país é que a prática da mediação está nas mãos dos assistentes sociais. Na França, a mediação começou no direito público e passou em seguida ao setor privado. 

Apesar da mediação estar associada ao sistema judiciário como uma forma alternativa de resolução de conflitos, seu campo é muito mais amplo. Ela pode ser utilizada em escolas, empresas, em grupos familiares, em problemas ambientais, etc. A mediação pode atuar em todas as situações em que duas ou mais pessoas ou grupos, estejam se relacionando e vivendo situações de conflito.

A mediação familiar no Brasil teve início nos anos 90. Isso possibilitou que situações de conflito entre casais e problemas referentes à guarda de filhos pudessem ser resolvidos de forma mais rápida e eficiente. 

A mediação é uma metodologia que propicia o diálogo entre as partes em conflito. Os mediados podem colocar os seus diferentes pontos de vista em relação à disputa e conseguem expressar seus interesses e necessidades. O mediador atua como um facilitador da comunicação e guardião do processo da Mediação. Ele exerce uma força implicativa transformando o contexto competitivo em colaborativo.

Podemos dizer que existem vários modelos de mediação, cada um com sua metodologia

própria. O que os diferencia depende basicamente do campo de atuação onde será aplicado e os resultados que queiram ser alcançados.

A Mediação Transformativa, que norteou este trabalho, parte da idéia da competência do indivíduo para refletir a respeito de sua própria situação de conflito. Se espera que, auxiliado pelo mediador, possa assumir sua participação na construção da disputa, reconhecendo melhor suas necessidades e as do outro, aliviando desta maneira a tensão entre as partes. Este modelo de mediação tem objetivos diferentes da Mediação Tradicional, cuja finalidade principal é alcançar um acordo entre as partes. A Mediação Transformativa tem como meta modificar as relações das pessoas envolvidas no conflito, buscando soluções satisfatórias para as questões trazidas por elas. Ela focaliza e limita muito claramente o problema a ser tratado sem pretender atingir uma problemática que esteja fora da zona de conflito delineada. 

Em relação aos conflitos, entende-se que são construídos na inter-relação das pessoas envolvidas e que é responsabilidade delas a desconstrução destes. É importante ressaltar que este modelo de mediação é especialmente indicado para as pessoas que tem relações continuadas no tempo, como é o caso de pais separados ou sócios que trabalham há muito tempo juntos e precisam continuar se relacionando. 

O mediador tem como função facilitar o diálogo. Por meio de perguntas ele amplia a compreensão do conflito e possibilita que os envolvidos possam expressar seus distintos pontos de vista. Ele propõe novas formas de conversação aos mediados, que em geral se encontram envolvidos numa rede de falas repetidas e infrutíferas. Ao criar uma dinâmica de intercâmbio entre as partes, possibilita uma melhor escuta que por sua vez permite novas formas de comunicação capazes de propiciar o novo e inusitado. O mediador não busca julgar ou encontrar um culpado responsável pela situação, procura fazer com que as partes falem das diferentes formas com que vivenciaram o conflito e possam identificar a responsabilidade de cada um. Desta maneira, não existirá um único responsável, como ocorre usualmente nas disputas em que os envolvidos apontam um ao outro como causador do desencontro. Consegue-se, assim, ampliar o quadro e redefinir uma nova dinâmica.

Pensamos que a dificuldade entre as partes é eminentemente relacional e que o foco está no “entre nós”. A possibilidade da modificação relacional estará dada quando se puder conseguir um diálogo diferente, que permita una nova reflexão dos envolvidos. 

Para desenvolver sua função, o mediador transformativo observa os aspectos em que os mediados se sentem incompreendidos. O mediador fica focado no aqui e agora do encontro com os mediados, presta atenção tanto nos comentários verbais como nos não verbais e procura identificar as questões realmente importantes para cada um. Uma vez localizados, estes pontos podem ser trabalhados para que os mediados recuperem a possibilidade de encontrar alternativas mais satisfatórias para seu relacionamento.   


Setting da Mediação Transformativa  

O “setting” da Mediação Transformativa é composto por dois mediadores, que se sentam em frente aos mediados em cadeiras eqüidistantes. Ao lado deles e no mesmo ambiente, fica um grupo de 4 a 6 profissionais que chamamos de equipe reflexiva, que não se comunica diretamente com os mediados. Esta equipe tem a função de refletir sobre os conteúdos trazidos durante o processo. Os mediadores podem chamar a equipe quando o considerarem necessário.

Quando chamada, a equipe reflexiva se fecha em si mesma (conforme ilustração abaixo) e cada um dos integrantes dá sua contribuição a respeito do caso. Esse cuidado serve para preservar a condução do processo que é de responsabilidade dos mediadores de campo. No final dessas falas os mediadores costumam perguntar aos mediados o que acharam do que foi dito, se algum aspecto mencionado os tocou de alguma forma. Além disso, os mediadores de campo podem utilizar ou não as reflexões oferecidas pela equipe. 

Setting da Mediação Transformativa:



 

Apesar de muito útil, a utilização de equipes reflexivas nem sempre é possível por causa do custo da remuneração dos profissionais. Esse formato é utilizado com mais freqüência em instituições de ensino e em casos nos quais há interesse de chamar a equipe pelo tipo de trabalho a ser realizado.  


Etapas do processo de Mediação

Pré-Mediação - encaminhamento e procedimentos: A indicação para a mediação costuma ser feita por advogados, psicólogos, assistentes sociais, por instituições como o judiciário e pelos próprios clientes que já passaram pelo processo. O encaminhamento pode ser feito para instituições ou para consultórios privados.

Ao entrar em contato, as pessoas interessadas já recebem algumas informações prévias sobre o processo e são convidadas para um encontro com os mediadores e a equipe reflexiva para obter mais detalhes e resolver dúvidas. Se apenas uma das partes comparece, fazemos um convite à outra para que ela tenha a mesma oportunidade de conhecer a Mediação, cuidando de um dos princípios fundamentais que é o equilíbrio entre as partes. Em muitos casos notamos que os conflitos estão na forma como as pessoas se comunicam e lidam com seus problemas, podendo ocasionar crises, impasses e rompimentos nas relações. 

Como o convite para vir ao primeiro encontro é feito pelos mediadores de maneira amigável, numa linguagem muito diferente da utilizada pelo judiciário que é impositiva, na maior parte das vezes as pessoas aceitam comparecer ao encontro. No entanto, o propósito da Mediação ainda precisa de maior divulgação e esclarecimentos. Há certa confusão com relação a outras metodologias que costuma trazer inicialmente uma dúvida a respeito da adesão ao processo. A decisão de participar deve ser voluntária de ambas as partes para que o processo aconteça. 

A mediação tem sido vista nos últimos anos como um passo prudente antes de entrar em processos jurídicos caros, morosos e desgastantes emocionalmente. Como mediadores trazemos esta questão para informar a os clientes a respeito dos benefícios e vantagens da Mediação. As pessoas precisam ter conhecimento de que ao entrar na justiça perdem o poder de decisão. Transferem para o juiz a função de determinar sobre as suas próprias soluções, que nem sempre vão de encontro às suas verdadeiras necessidades e interesses. Na mediação, ao contrário, elas participam ativamente da construção da solução e aceitam apenas aquilo que lhes parece viável. O mediador neste momento exerce o papel de agente de realidade.

Na mediação se considera haver atingido um bom trabalho quando os dois participantes se beneficiam com as soluções negociadas, ao invés de um ganhar e outro perder e se sentir prejudicado. No processo da mediação os envolvidos no conflito podem ser ouvidos e respeitados nas suas colocações de forma conjunta e individual. Cada um conta com um espaço de tempo para expor a sua própria história sobre o conflito.

O processo de mediação é rápido e objetivo. Costuma ser realizado entre 6 e 8 encontros de uma hora e meia cada.

O primeiro encontro – procedimentos: No inicio do primeiro encontro, o mediador faz uma “fala de abertura” onde explica o que é mediação e estabelece algumas regras para propiciar o bom andamento do trabalho, sendo talvez a mais importante delas, garantir que os mediados sejam ouvidos com respeito e sem interrupção. O mediador informa sobre sua neutralidade e esclarece também que não poderá ser chamado pela justiça para depor a favor ou contra qualquer um dos mediados. Nesta breve fala inicial o mediador, de acordo com seu próprio estilo, tentará criar um clima de tranqüilidade e colaboração para desenvolver o diálogo. Para deixar a conversação fluir, ele entrega pranchetas com papel e caneta para que cada um escreva o que achar necessário para se lembrar quando chegar a sua vez de falar. O mediador facilita o diálogo e cuida para que seja dado mais ou menos o mesmo tempo para cada uma das partes. Intervenções privadas confidenciais, chamadas de cáucus, são muito produtivas e quando oferecidas a um, garantem ao outro a mesma possibilidade.

No primeiro encontro é assinado um contrato de confidencialidade, composto de um breve texto em que todos envolvidos se comprometem a não divulgar o que será falado no espaço da mediação. Em seguida à assinatura dos contratos, o mediador pede para que cada mediado apresente seu breve relato do conflito. Pergunta também o que considera que seria um bom resultado da mediação para cada um deles.

Segundo encontro: No segundo encontro, o mediador dá prosseguimento aos relatos sobre o conflito. Procura levantar informações fazendo perguntas aos mediados sem julgar ou procurar culpados. Ele está interessado na descrição das histórias sobre o conflito. Seu objetivo é esclarecer qual e o problema segundo o ponto de vista de cada uma das pessoas, procurando incentivá-las a escuta respeitosa em relação à fala do outro. As perguntas utilizadas nestes encontros costumam ser abertas, circulares, reflexivas e não impositivas ou sugestivas, permitindo assim que os envolvidos expandam suas exposições ampliando a possibilidade de encontrar as soluções alternativas ainda não pensadas. 

O mediador ouve e procura cuidar da sua postura de neutralidade com envolvimento. Ele considera e legitima as visões, pensamentos e sentimentos de cada uma das partes. Intervém com perguntas no intuito de buscar novas descrições para as questões apresentadas e de identificar os interesses comuns das partes, reduzindo o grau de hostilidade.

Às vezes, quando se consegue ouvir e ampliar as historias que cada um tem para contar e o mediador pergunta o por quê, ou para que querem o objeto que estão disputando, se consegue conhecer melhor os interesses e necessidades de cada um. Isso pode levar a um acordo onde todas as partes ganham, como foi por exemplo o caso da disputa da laranja: quando se perguntou o que iriam fazer com ela, uma pessoa respondeu que queria o suco e a outra que usaria a casca para fazer geléia. Neste caso a mediação permitiria uma solução “ganha-ganha” no lugar de um ganhar e outro perder.

A experiência tem nos mostrado que no final do segundo encontro os mediadores, com a ajuda dos mediados, já conseguem identificar as informações relevantes que os auxiliarão no momento da construção da agenda, quando então as questões parecem mais claras.

Um dos pontos mais importantes e difíceis para desempenhar o papel do mediador é controlar e se possível diminuir a sua própria ansiedade para resolver as questões apresentadas. Seu papel é de facilitador e de guardião do processo, confiando que ao criar um ambiente neutro, mais amistoso e colaborativo, onde as partes possam ser ouvidas e respeitadas, se possa chegar a conclusões mutuamente satisfatórias. O mediador transformativo entende que as soluções devem ser co-construídas, de maneira que todos se sintam responsáveis pelas soluções encontradas e que possam viabilizá-las, atendendo assim às necessidades e interesses dos envolvidos.

O terceiro encontro: este momento do processo costuma ser bastante enriquecedor e trabalhoso. É nele que se começa a construir uma agenda de questões que as partes consideram importantes e gostariam de ver resolvidas na mediação. 

O esforço para construir a agenda costuma se estender ao 4o encontro quando então os mediados vão identificando as opções e alternativas existentes para resolver cada uma das questões da agenda.

Para facilitar essa construção, o mediador utiliza recursos e princípios da negociação de Harvard, como separar a pessoa do problema, ajudá-las a identificar os interesses ao invés de posições, buscar os interesses comuns e as soluções viáveis para cada questão. Ron Kelly, fundador do California Dispute Resolution Council, desenvolveu perguntas que podem ser utilizadas se as pessoas estiverem em suas posições muito cristalizadas dificultando o andamento do processo:

1) você quer resolver o problema? 

2) qual é o problema? 

3) aponte 4 soluções possíveis para o problema.

4) qual das alternativas parece melhor? 


Estas perguntas podem também ser utilizadas em encontros anteriores quando os mediadores identificam dificuldades dos mediados em seguir em frente com o processo 

Quinto encontro: nesse encontro o mediador se concentra em elaborar com os mediados, soluções alternativas e aceitáveis para ambos. Para cada questão trazida são apresentadas propostas e opções alternativas. Neste momento utilizamos com muita freqüência um “flip-chart” em que o mediador anota os combinados para cada questão.

Sexto encontro: nesse último encontro, o mediador traz redigidos os termos do acordo em linguagem simples, procurando inserir falas dos mediados para que estes se sintam representados no documento. O mediador lê em voz alta e confere com os mediados se todos os envolvidos se sentem representados pelo relato. Alguns ajustes podem ser feitos no texto, para em seguida ser assinado e distribuído, ficando cada um com uma cópia. Antes de finalizar, o mediador sugere um encontro, que nomeamos de “manutenção”, para dali 30 ou 60 dias. O intuito é saber se foi possível respeitar os combinados, o que facilitou ou dificultou e o que poderia ajudar. Neste momento podemos verificar os resultados efetivos da mediação.


Condições para atender um caso de mediação

Para poder ser mediada uma pessoa deve estar disposta a participar de todo o processo de forma voluntária, sem convencimentos ou imposições. O importante é que o mediador consiga fornecer as informações necessárias para que ela entenda o processo e a sua participação, de forma que se sinta livre para continuar ou suspender o trabalho a qualquer momento que achar oportuno. 

Freqüentemente observamos que as pessoas chegam à Mediação culpando o outro pelo conflito e se colocando no lugar de vítima. Como o mediador pode ajudar as pessoas a se sentirem igualmente responsáveis pelas questões trazidas? Como a pessoa que se vitimiza pode se fortalecer e assumir o seu protagonismo? Se isto não acontece, o processo da Mediação não e possível. A pessoa precisa assumir sua co-responsabilidade para poder ser mediada. Esta condição pode não estar presente desde o início, porem, é função do mediador, com a ajuda de sua metodologia, ajudá-la a se comprometer na co-construção das possíveis soluções.

Assim como no caso do pedido de terapia, também na mediação precisa existir uma demanda, um pedido de ajuda. Ou seja, o reconhecimento de que a pessoa tem uma dificuldade, quer resolvê-la e não se considera em condições de modificar a situação sozinha. Esse é um passo importante que abre a possibilidade de considerar a perspectiva do outro para poder se transformar, levando em conta as necessidades de si e do outro, reconhecendo suas competências e as do outro.

Resumindo, entendemos que as condições fundamentais para que o processo aconteça são:

1) Aderir voluntariamente ao processo da Mediação;

2) Assumir se como co-responsável do conflito;

3) Reconhecer que tem um problema;

4) Querer resolver o problema 

 

Atendimento de um caso de mediação na abordagem Transformativa

Este atendimento foi realizado numa instituição por uma dupla de mediadores e uma equipe reflexiva. O relato descreve os impactos, impressões, reflexões e as ações dos mediadores durante o processo.  

O casal Adriano* e Cristina* receberam indicação para mediação pelo terapeuta do filho Roberto*, que sofre de esquizofrenia. Segundo o terapeuta, divergências dos pais quanto à condução dos cuidados com o filho estavam dificultando o tratamento. Antes do atendimento recebemos as seguintes informações que foram registradas na primeira entrevista feita pela instituição no sistema de porta de entrada:

O casal está separado desde que o filho era pequeno e tanto Adriano como Cristina constituíram novas famílias. Em função das dificuldades causadas pela doença, foi decidido que o melhor lugar para Roberto, seria morar num sítio próximo à São José dos Campos, onde vivem os pais. Lá ele recebe cuidados dos pais, dos caseiros e de um acompanhante terapêutico.

A mediadora entrou em contato por telefone com mãe. Assim que se apresentou, Cristina começou a falar sem parar. Como o objetivo não era alongar a conversa pelo telefone, a mediadora teve certa dificuldade para conseguir marcar o dia e hora do atendimento.

Com Adriano o contato foi um pouco mais fácil. Apesar do “sobressalto” inicial quando recebeu a ligação do mediador convidando para um encontro de mediação, logo em seguida se prontificou a comparecer no dia e hora marcados.

Adriano chegou primeiro. Assim que o mediador se apresentou ele soltou um suspiro aliviado e desabafou: “ufa! ainda bem que você não é advogado, quando vi seu cabelo comprido e sua barba fiquei mais tranqüilo”. A mediadora desceu para a recepção logo em seguida. 

Estávamos tomando um café quando a campainha tocou novamente. A mediadora abriu a porta e se identificou para Cristina que desandou a falar, contando, de forma muito “angustiada”, que seu filho de 20 anos havia “batido nela violentamente” dentro do carro porque estava levando-o contra sua vontade para participar de algumas atividades numa instituição que cuida de pessoas psicóticas. Por causa desse episódio ela tinha acabado de bater o carro. Frente a esta reação, a mediadora sugeriu que continuássemos conversando na sala de atendimento e que poderíamos cuidar só de alguns pontos que eles considerassem importantes. 

Logo em seguida Cristina perguntou, surpreendentemente, se seu ex-marido havia chegado. Como estávamos num ambiente pequeno, parecia impossível que não pudesse vê-lo. Passado o constrangimento inicial, subimos para a sala onde nos aguardava a equipe reflexiva – um grupo multidisciplinar de mediadores, que assiste o processo de mediação e em momentos oportunos, quando chamado pelos mediadores de campo, participa com idéias e reflexões.

Após breve apresentação da equipe, esclarecemos ao ex-casal o que é mediação. Informamos a respeito dos contratos de adesão, de confidencialidade e da regra de falar um de cada vez para que pudessem ser devidamente ouvidos.

O ex-casal Adriano e Cristina aceitou participar do processo. Assinamos os contratos e demos então início aos relatos que tiveram algumas intervenções dos mediadores e da equipe reflexiva.

O primeiro encontro nos pareceu “caótico”. Os mediados acusavam um ao outro pela doença de Roberto, não conseguindo ouvir o que cada um dizia. O clima era de muita agressão. O pai manifestou que estava buscando um diagnóstico para o filho e por isso foi até os Estados Unidos para consultar um psiquiatra que lhe recomendaram. Esta viagem foi feita a revelia da mãe que não aceitava que seu filho fosse medicado.

Cristina reclamou que o filho já experimentou todos os tipos de remédio e não queria mais que ele fosse medicado. Disse que os remédios não adiantavam nada, que traziam efeitos colaterais desagradáveis e que o filho resistia a tomá-los, mas era obrigado porque o pai ficava inseguro de parar. Acrescentou que Adriano só via a doença do filho e isto era muito negativo. Avaliou também que quando estava sob seus cuidados Roberto ficava tranqüilo, mas quando saia com o pai voltava muito alterado e citou exemplos. Num deles relacionou o fato do filho ter adquirido um comportamento compulsivo com relação à limpeza depois que Adriano o levou para transar com uma prostituta.

Perguntamos se Roberto já tinha apresentado este tipo de comportamento antes. Esta pergunta não foi respondida e Cristina reclamou que Adriano insistia em dizer que Roberto tinha comportamentos obsessivos. Ela não achava tão importante que Roberto não quisesse se sentar em lugares que considerava sujos. Às vezes estavam sujos mesmo.

Cristina informou que queria mudar o acompanhante terapêutico e trocar a medicação por não gostar do psiquiatra que Adriano consultou.

 Exploramos o histórico da doença: Como transcorria a vida de Roberto antes de se instalar a doença? 

Adriano transmitiu, com profunda tristeza, que o filho estava estudando engenharia quando teve o primeiro surto. Foi internado duas vezes. Os psiquiatras falam de cura relativa. Comentou que começou a contestar o tratamento psicanalítico após um surto em que Roberto sumiu. Saiu andando pelo bairro onde mora, sem saber qual era o próprio sexo. Depois de anos sem resultados satisfatórios, Roberto passou a ser medicado e ficou bem, avaliou Adriano. Acrescentou que confiava muito na medicação por ele (pai) ter sofrido durante muito tempo de síndrome do pânico até ser medicado e conseguir voltar a ter uma vida normal. 

Cristina respondeu que o filho realmente ficou bem quando fez tratamento com um bom psicanalista e sem remédios. Comentaram que o tratamento de Roberto era constantemente alterado. Trocavam de profissionais, psiquiatras e terapeutas, porque não conseguiam concordar com as decisões que cada um tomava.

Neste contexto perguntamos se eles percebiam como ficava polarizada a possibilidade de tratamento enquanto se posicionavam com propostas aparentemente incompatíveis. Eles pareceram refletir. A mediadora acrescentou que o importante seria poder juntar as propostas e não dividi-las, que a medicação e o tratamento terapêutico poderiam ser complementares.

No segundo encontro, seguindo os passos do processo de mediação, convidamos os mediados a contar a historia sobre o filho e a relação do ex-casal. Cristina comentou que sabia por que seu filho era esquizofrênico, e revelou que ele não mamou no peito. Sua visão naturalista a fazia acreditar que os problemas dele estavam relacionados a esse fato. Ficou deprimida depois do parto. Roberto teve também problemas de fonoaudiologia – aos 2 anos ainda não falava. O casamento era um “inferno” e acabaram se separando quando o filho tinha 7 anos. Depois disso o pai se afastou, ficou 6 meses sem ver o filho. 

Depois da separação, Cristina formou uma nova família e teve um filho. Adriano também teve duas filhas com outra esposa.

Ainda pequeno Roberto foi morar na casa da avó materna. O casal percebia que ele se sentia bem naquele ambiente e achou por bem que vivesse lá. A avó era afetuosa e cuidadosa com o neto. Segundo Adriano essa foi a melhor época da vida do filho. Aos 12 anos voltou a morar com a mãe. Aos 13 passou por uma cirurgia para corrigir a fala. Mudou-se para a casa do pai aos 18 após brigar com o padrasto. 

Os dois primeiros encontros transcorreram num clima hostil. Os pais se contradiziam permanentemente ao dar as informações, se denegriam mutuamente, se culpando por não ter uma atuação mais eficiente para ajudar o filho. Como mediadores nos vimos envolvidos numa situação confusa com pouco espaço para intervir, tivemos uma sensação de impotência e frustração frente à gravidade da situação. Estávamos interessados e envolvidos no caso, conseguíamos tolerar a situação que nos parecia caótica. A equipe de mediação também ficou perplexa pelo clima e a “confusão” reinante no caso.

Apesar da adversidade, foi possível extrair alguns pontos importantes em que os dois concordavam: queriam o bem do filho, que ele continuasse produzindo arte, que fosse mantido o terapeuta ocupacional e o acompanhamento psicológico. Divergiam no entanto, entre a psiquiatria e a psicanálise. Esses foram os pilares sobre os quais foi possível construir um acordo. 

No final do terceiro encontro a mãe informou que estava vendo seu filho mais agitado e que ele havia feito cortes nas pernas e só parou quando viu o sangue jorrar. Este episódio expôs a gravidade da situação e alarmou pela forma e pelo momento em que foi colocado. A mediadora falou que o filho precisava ser cuidado de forma permanente e que eles necessitavam ser aliados para desempenhar a função parental.

O filho foi colocado como foco central do processo. Sua saúde física e mental era primordial. Baseados nisso convidamos os pais a construírem alianças e mudar o jogo de acusação e culpa que os colocavam como inimigos. 

Nos reunimos (os mediadores) antes do 4º encontro e concluímos que precisávamos intervir mais, conduzir a mediação sem deixar que as conversas desviassem dos focos de interesse. Além disso, deveríamos estimulá-los a focar no presente e no futuro e parar de se cobrarem e se penalizarem pelo passado. Eram necessárias medidas urgentes e eficazes para cuidar de Roberto, para isso precisávamos ajudá-los a fazerem acordos em relação aos tratamentos. 

Desenhamos um diagrama que foi reproduzido na sala de mediação. Sobre ele foi sendo construído um acordo entre o 4ª e 5º encontro.

Assim que os mediados chegaram para o 4º encontro deram a notícia que haviam internado o filho. Foram juntos levá-lo à clínica e ele aceitou sem brigar. Tiveram a clara percepção de que o fato de estarem alinhados ajudou o filho a não resistir como tinha feito em outras oportunidades. Para confirmar esta percepção perguntamos: “Como acham que ajudam mais o Roberto, sendo aliados ou adversários?”

A internação de Roberto durante a mediação parece ter aberto um espaço de alívio e reflexão para o casal, representando também uma proteção quanto ao risco de vida do filho e a tomada de consciência da situação. 

Conseguiram falar ao respeito dos cuidados do filho. Seguindo o quadro apresentado, fomos construindo os termos de acordo. Adriano propôs a se empenhar no tratamento do filho, e a mãe, por outro lado, se ocuparia do dia-a-dia dele – alimentação, cuidados da casa e atividades, como cozinhar, cuidar dos animais do sitio, jardinagem, etc. 

Seguindo as observações iniciais do terapeuta de Roberto, parecia claro que uma questão fundamental a ser trabalhada era quem seria o coordenador do processo, pois o desentendimento dos pais quanto à condução do tratamento estava prejudicando muito o garoto. Sugerimos que esse papel deveria ser desempenhado por um profissional especializado, competente e no qual os dois confiassem. 

Os pais concordaram que essa pessoa seria o psicanalista que estava atendendo Roberto. Ele deveria ter a última palavra sobre o tratamento incluindo, a necessidade ou não de medicamentos, a freqüência com que Roberto deveria fazer terapia, os acompanhamentos terapêuticos e a terapia do casal parental. Além disso, foram identificadas e acordadas as funções dos pais e dos caseiros.

A utilização do diagrama que incluía os pais e os profissionais de saúde e suas respectivas tarefas e responsabilidades nos pareceu uma ferramenta adequada para organizar e reforçar o comprometimento das partes, a fim de dar continuidade ao cuidado e ao tratamento de Roberto. Resgatar a comunicação entre eles, num clima mais colaborativo e menos agressivo foi de fundamental importância para poder fazer os acordos. Assim conseguiram, a partir do terceiro encontro, respeitar as falas de cada um. A tolerância da situação caótica por parte dos mediadores que ofereceram um modelo diferente de relação, foi o que colaborou para que os mediados pudessem modificar suas condutas polarizadas e contraditórias. 

O 6º encontro teve o objetivo de confirmar os acordos construídos neste processo de mediação. Para tanto, como é de praxe, elaboramos um documento que expressava tais combinados. Assim que chegaram, Cristina e Adriano falaram que Roberto havia voltado para casa e estava mais tranqüilo. A saída da internação foi decidida de comum acordo entre os pais. Após a leitura do relatório de mediação, todos concordaram com o que estava escrito e assinaram o documento. Foi agendado um encontro para acompanhamento para dali a 60 dias.

A equipe reflexiva teve inicialmente uma reação de muita satisfação quanto ao resultado obtido, no entanto, ficou para nós mediadores, a impressão de que sozinhos dificilmente conseguiriam respeitar aqueles acordos. Esta idéia estava ligada as dificuldades de comunicação e à falta de respeito que tínhamos observado no começo.

Na data combinada o casal retornou para acompanhamento. Mas antes de atendê-los foi feita uma rápida reflexão entre mediadores e equipe reflexiva sobre qual teria sido o resultado. Estávamos descrentes. 

Subimos para a sala para conferir se haviam conseguido realizar os combinados. 

Para nossa surpresa o casal havia respeitado os combinados à risca! O clima entre eles era totalmente diferente. Havia maior tranqüilidade e respeito, onde ambos se ouviam melhor. Para o casal, para a equipe reflexiva e para nós mediadores ficou a constatação de que mostraram vontade de cumprir os acordos. 

Cristina manifestou seu agradecimento e falou que esta foi a primeira vez que conseguiu conversar com Adriano desde que seu filho adoeceu. Segundo os pais, Roberto estava com mais autonomia e havia até acompanhado o pai (que é engenheiro) em algumas obras. O pai disse que pensava em convidar o filho para trabalhar com ele. “Sinto-me como um pássaro cujo filho não voa, mas com a maior autonomia, sente que seu filho está começando a voar”.

Chegamos à conclusão que ajudou muito nesta mediação ter tolerado a situação caótica que apresentaram de início, poder mostrar um modelo diferente de relação, conseguir focá-los na tarefa a ser realizada olhando para o futuro e marcar a necessidade de serem aliados e não adversários. Foi importante propor uma rede de atendimento para agregar competências e incentivá-los a se ajudarem nesta difícil tarefa.

Este caso nos deixou como aprendizado que a mediação pode ser útil em casos graves desde que sejam delineados e identificados os conflitos pertinentes ao contexto da mediação. Como todo mediador transformativo estávamos muito comprometidos com o processo, em alguns momentos até fomos “convidados” pelos mediados para cuidar de forma mais ampla do caso, mesmo assim, conseguimos delimitar nossa função e respeitar os limites da mediação.


Co-mediadores: Magdalena Ramos e Dado Salem

Mediados: Cristina* e Adriano*

Filho: Roberto*

* Os nomes e algumas informações foram modificadas para preservar a identidade dos mediados. 


Equipe reflexiva: Ana Coutinho, Enny L. Murahovschi, Maria Cristina Machado, Maria Gabriela Leifert, Malu Felsberg, Lucy Mastrocola, Monica Burg (supervisora).


Bibliografia:

Moore, Christopher. O Processo de Mediação. Porto Alegre: Artmed, 1998.

Schnitman, D; Littlejohn, S (org.). Novos Paradigmas em Mediação. Porto Alegre: Artmed, 1999.

Andersen, Tom. Processos Reflexivos. Rio: Noos, 2002.

Marinés Suares. Mediando en sistemas familiares. Buenos Aires: Paidos, 2.002.

Dora Fried Schnitman (comp.) Nuevos Paradigmas em La resolucion de conflictos

Buenos Aires: Granica, 2.008.

Dora Frid Schnitman- Jorge Schnitman (comp.) resolución de Conflictos Nuevos Diseños Nuevos Contextos. Buenos Aires: Grancia, 2.008.

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