Por Dado Salem
Abril 2022
Tornar-se adulto é um evento traumático e os pais tem um papel importante nesse processo.
Há coisas que são tão comuns a todos nós que podemos dizer que são universais. Uma delas é o desejo de viajar. Mais que o simples deslocamento físico, uma viagem representa a vontade do novo. De novas experiências, novos ares, novos horizontes, novos conhecimentos, novos desafios… e que no final conduzem à transformação, porque se fizermos uma verdadeira viagem, longa o suficiente, retornamos diferentes do que partimos.
O texto mais antigo que se tem notícia, a Epopéia de Gilgamesh, apresenta justamente uma viagem. A do herói em busca da vida eterna, na Terra dos Vivos. Para chegar lá ele atravessa montanhas, florestas, mares, jardins e rios. Outro texto clássico cujo tema é a viagem é a Odisséia de Homero, que conta a longa e tumultuada jornada de Odisseu de volta para casa no final da Guerra de Tróia. Neste mesmo texto há também a viagem de seu filho Telêmaco em busca do pai, orientado por ninguém menos que Mentor, que veio dar nome à atividade de aconselhamento e no qual incorporou a deusa da sabedoria, Atená. Mentor (Atená) diz a Telêmaco que é a hora de deixar de ser criança e se tornar um homem. A viagem de Telêmaco representa, portanto, a passagem para a vida adulta.
A passagem para a vida adulta é um dos maiores desafios que enfrentamos. Na infância vivemos num mundo mágico em que as coisas são resolvidas para nós. No processo de nos tornarmos adultos, no qual precisamos prover nosso próprio sustento, arcar com as consequências de nossos atos, nos responsabilizarmos pela nossa vida, somos expulsos de uma zona de conforto.
Tornar-se adulto é um evento traumático. Na natureza, a mãe pássaro empurra os filhotes para fora do ninho para que eles voem. Em sociedades tribais, os jovens passam por rituais em que muitas vezes têm que aguentar um sofrimento. Os Karajá, numa primeira iniciação, perfuram o lábio inferior dos jovens com a clavícula de um macaco. No Hetohoky, o maior ritual dos povos indígenas do Tocantins, as crianças são afastadas do convívio social e fazem uma viagem pela floresta onde adquirem aprendizados, para então retornarem adultas.
Os contos de fada, assim como os mitos, são histórias milenares e muitos trazem a passagem para a vida adulta como tema. Marie Louise Von Franz, discípula de C.G. Jung, fez um importante trabalho de interpretação desses contos e deu atenção especial às figuras femininas. Cinderela, Bela Adormecida, Rapunzel, todas são jovens e bonitas num momento de transição para a vida adulta.
Os pais têm fundamentalmente duas funções: de um lado cuidar e proteger os filhos, e de outro, incentivar o desenvolvimento deles. Esta fase de transição para o mundo adulto, é um momento de tensão entre o cuidado e o estímulo. Essas funções se tornam ambíguas. Por isso, nos contos de fadas a figura da mãe é substituída por duas, uma negativa, a madrasta, e outra positiva, a madrinha. A madrasta (ou bruxa) é aquela que não deixa a jovem ir ao baile, que a tranca na torre, que oferece o fruto doce que adormece, representando a superproteção, as blindagens, os mimos excessivos que atrapalham e estragam desenvolvimento dos filhos. A madrinha é a bondosa que ajuda, que arruma o vestido, a carruagem, que incentiva a partida em direção à aventura que leva ao desenvolvimento e à autonomia.
Passar por sofrimentos e limitações faz parte da condição humana, esse é o motivo de serem peças fundamentais nos ritos de iniciação. A questão é como lidar com eles. Para que um sofrimento seja suportável ele precisa ter um objetivo, uma meta, um sentido, algo maior que ele. Na linguagem comercial seria ter um retorno maior que o investimento. O sofrimento se torna assim um sacrifício, um trabalho árduo mas cheio de significado. É do sentimento de que o sofrimento tem um sentido que brota a perseverança para completar a viagem sem desistir ou mudar o caminho.
Fernando Pessoa escreveu um belo poema que trata dos medos e tormentos que fazem parte de todo processo de iniciação.
HORIZONTE
Ó mar anterior a nós, teus medosTinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
Esplendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstracta linha.
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.
Horizonte é o mundo a ser descoberto, a vida a ser vivida. Mas para isso é preciso ultrapassar obstáculos, dificuldades, sofrimentos, a noite, o mistério, as tormentas, a distância, o medo... No desembarque da travessia há uma revelação que se abre em sons e cores, a realização dos sonhos e de si mesmo: os beijos merecidos da Verdade.
Com isso concluímos que só há uma coisa pior e mais difícil que fazer uma verdadeira viajem... é não viajar, não sonhar, não se realizar.
Belo texto
ResponderExcluirPura verdade
Obrigado Giorgio... um abraço!
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