A visão do Bobo

Por Dado Salem
inspirado no texto de Cecil Collins, artista inglês do século XX
Julho 2024


Num mundo dominado pela razão, o Bobo desafia as convenções, revela a magia da imaginação e a beleza da simplicidade. 




Com o avanço do mundo moderno, sobrecarregado de racionalidade e dominado pela lógica, o valor supremo da sociedade passou a ser o “útil” e o “produtivo”, o que reduziu o ser humano a uma engrenagem sem alma. 

Nesse contexto, surge uma figura que anda levemente à margem da razão, livre das amarras do pensamento convencional. Esta figura é o Bobo (Fool), ilustrado pela nossa cultura como Forrest Gump, Chancey Gardner de Muito Além do Jardim, O Idiota de Dostoievsky e Dom Quixote. O Bobo representa a imaginação viva, a inocência criativa, é o oposto do “homem útil”, que acredita que o propósito da vida é o trabalho e o sucesso. O Bobo não serve, ele vive. 

Muitas vezes incompreendidas e subestimadas, essas figuras personificam uma visão que vai além das superficialidades da existência moderna, dando um vislumbre de um mundo onde a inocência e a sabedoria se misturam.

A sociedade exalta o cientista e o técnico enquanto destrói a imaginação poética e o ócio contemplativo, condições necessárias para ver e sentir a vida em profundidade. O Bobo, enquanto isso, não está preso às estruturas rígidas do coletivo. Ele é um andarilho que não busca poder, prestígio ou conhecimento... valoriza apenas o milagre de estar vivo. Inútil aos olhos da civilização, ele anda pelo mundo despercebido, desconsiderado, mas com senso de curiosidade, aceitando o desconhecido com coragem e graça. Por meio de suas aventuras, o Bobo aprende sobre a vida e sobre si mesmo. Seus olhos inocentes, livres do cinismo, veem o mundo de maneira pura. Para o Bobo, cada momento, cada encontro é uma troca significativa, ele caminha pelo mundo conectado, como parte de um grande organismo vivo.

Collins afirma que a poética da imaginação é uma forma de resistência à mecanização. A sociedade moderna, mata o poeta que existe em cada criança, educando os jovens para serem "cidadãos úteis", focados em resultados, motivados por bônus, metas, rankings, cargos, eficiência e produtividade. Essa mentalidade coletiva, segundo ele, é o verdadeiro motor das guerras e da destruição. Uma civilização sem reverência pela imaginação poética e pela arte está condenada à barbárie. A técnica sem consciência espiritual gera destruição e a educação sem amor à vida se torna servidão mecânica.

Collins propõe que o dia 1º de abril, Fools’ Day (no Brasil traduzido como dia da mentira), seja celebrado como o dia sagrado do Bobo, um feriado universal sem trabalho, dedicado à generosidade, à imaginação e à alegria.

Na mitologia, o Bobo aparece como um símbolo tanto de começos quanto de finais, um guardião da fronteira entre o conhecido e o desconhecido. Ele vive no limiar porque sua visão é de unidade. Ele percebe a interconexão das coisas, os fios que formam juntos a teia da vida. Onde outros veem divisão e conflito, o Bobo vê harmonia e cooperação. Seu coração está sintonizado com os ritmos da natureza, seu espírito em comunhão com o Cosmos. Por meio do olhar do Bobo, somos lembrados de que não somos seres isolados, mas partes de um todo.

Na arte, a presença do Bobo é um sopro de ar fresco, uma lembrança do poder da imaginação e da importância de brincar. Ele perturba a visão concreta com suas criações convidando a ver o mundo através da lente do encanto. A arte do Bobo, muito além de maestria ou perfeição, é se permitir errar, sobre expressão e autenticidade. Ele ensina que a criatividade brota do caos cheio de possibilidades, sem os limites de regras e convenções.

No entanto, em nosso mundo concreto e poluído, o Bobo é muitas vezes marginalizado, sua sabedoria descartada como tolice. Numa cultura que valoriza o intelecto acima da intuição e tem o sucesso material como métrica de realização, a visão do Bobo é um ato radical de rebeldia. Ele nos desafia a reconsiderar nossas prioridades, a questionar as narrativas que nos foram contadas e a nos reconectar com verdades que existem em todos nós.

O Bobo nos faz redescobrir a criança dentro de nós, deixando de lado nossos medos e dúvidas, abrindo o coração para a magia do agora e confiar no desenrolar das coisas. O Bobo nos ensina a viver a vida, a rir diante da adversidade e a encontrar beleza nos lugares e momentos mais inesperados. 

Quando a humanidade, esgotada e faminta de sentido, reconhecer sua pobreza espiritual, estará pronta para receber novamente o espírito da imaginação. Então, das ruínas da mecanização, renascerá uma nova consciência poética da vida, onde o Bobo será reconhecido como expressão de uma essência divina.

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