Por Dado Salem
Março 2025
O antropólogo norteamericano Michael Harner, mudou a compreensão ocidental sobre o xamanismo. Harner estudou profundamente culturas indígenas em vários continentes, revelando um mapa da realidade espiritual. Ele abriu novas portas para a percepção humana com estados alterados de consciência sem o uso de alucinógenos. Um legado indispensável para quem busca sabedoria, espiritualidade e harmonia com a natureza.
Em 1956 Harner conseguiu uma bolsa de estudos para viajar para a América do Sul para fazer um estudo etnográfico nas selvas do leste do Equador. Naquela época ele não sabia nada sobre xamanismo e com sua visão acadêmica moderna, pensava que xamãs eram pessoas malucas. Mas à medida que foi fazendo perguntas, aos poucos foi entendendo que eram capazes de mudar sua consciência à vontade para curar pessoas e para ver coisas que outras pessoas não enxergavam.
Depois, Harner foi convidado para uma expedição nas as selvas do Perú, onde encontrou um grupo isolado, num local remoto e lá ficou quase um ano. Num dado momento, viu 5 homens fazendo algo que não entendeu e perguntou se podiam explicar. Eles disseram que não, que se ele quisesse saber teria que experimentar por si mesmo, e ofereceram Ayahuasca. Harner aceitou... depois de uns 10 minutos ele começou a ver imagens no teto da choupana onde estavam. Teve visões profundas e compreendeu a sabedoria dos xamãs. Quando saiu da experiência, os indígenas disseram que nunca tinham conhecido alguém que em sua primeira experiência tivesse tanto conhecimento. E o xamã falou que ele poderia ser um mestre neste trabalho. Foi uma mudança de vida e desde então Harner passou a trabalhar com os xamãs. Sua experiência revelou que os xamãs não eram loucos, mas sim mestres do controle da consciência.
Nos anos 1960 Harner morou entre o Laos e a Tailândia, para estudar os xamãs locais. Lá conheceu velhos monges que saíam da floresta com sacos de raízes e ervas, montavam uma tenda e ofereciam leituras, curas e conexões psíquicas. Um de seus professores do Tibete ia a lugares remotos, fazia as pazes com os demônios em cavernas, pacificava espíritos, com objetivo de encontrar harmonia no mundo natural. Ele identificou um grande número de xamãs nessas regiões, assim como na Birmânia e no Japão.
Os anos 60 foram efervescentes. Surgiu o movimento psicodélico, a cultura do rock, o LSD e outras coisas que mudaram nossa cultura. De volta aos EUA, Harner lecionou antropologia e organizou workshops em locais como Esalen, onde convidou figuras como Carlos Castaneda, um desconhecido na época.
Em termos de mudança de consciência, a grande novidade foi que não apenas as substâncias psicodélicas poderiam fazer isso, mas que haviam diferentes “portas” para essa outra realidade do mundo espiritual. Com base em seus estudos em culturas diversas, Harner percebeu que 9 em cada 10 xamãs realizavam suas viagens espirituais sem o uso de substâncias alucinógenas, utilizando apenas o som de tambores ou maracás para auxiliar o processo. Essa descoberta foi um dos grandes marcos de seu trabalho.
O crescente interesse pelo xamanismo o levou a fundar o Centro de Estudos Xamânicos em 1979, que possibilitou que ocidentais aprendessem a acessar o mundo espiritual sem precisar viajar à Amazônia. Uma das principais contribuições de Harner foi tornar acessível ao público ocidental a prática de alcançar estados alterados de consciência para vivenciar diretamente o mundo espiritual. Ele respeitou as tradições indígenas e sistematizou o que chamou de "xamanismo essencial", sem buscar imitar práticas especificas de uma determinada tribo, mas um conjunto de princípios universais baseados em práticas que haviam em comum entre xamãs de diversas culturas. Ele nomeou essa prática como uma "tecnologia do sagrado", uma forma de acessar estados de consciência não ordinários para expandir o conhecimento e obter cura. Seu legado inclui um vasto arquivo de experiências xamânicas coletadas ao longo de décadas, servindo como base para futuras pesquisas.
Ele enfatizou a importância do relacionamento direto com os espíritos, fundamentais para a cura e o auxílio às pessoas. Uma das peças centrais do trabalho é a viagem xamânica. Seu método ensina a jornada como meio de acessar outras realidades e encontrar guias espirituais. Nela, uma pessoa em um estado alterado de consciência acessa o que se chama de realidade alternativa. Assim, viaja para fora desta realidade comum e adentra outros mundos habitados por seres espirituais. Durante essa jornada, o xamã pode buscar orientação, curas e respostas para desafios pessoais ou coletivos. A experiência se desenrola em três níveis distintos: o mundo inferior, onde estão os espíritos ancestrais e os animais de ajuda; o mundo médio, onde coexistem seres humanos e espíritos naturais; e o mundo superior, habitado por guias espirituais mais elevados.
Para o xamanismo, o fundamental é a intenção, o resto (como instrumentos, cantos e objetos sagrados) são materiais de apoio para facilitar a experiência. O xamã não precisa seguir um rito específico ou usar determinados objetos para que sua jornada seja eficaz. O mais importante é a conexão genuína com o mundo espiritual e a disposição para aprender e receber orientação.
Em 1980, Harner publicou The Way of the Shaman, e se tornou referência mundial no tema. Sua abordagem respeitosa e estruturada ajudou a revitalizar o xamanismo em culturas indígenas que haviam perdido suas práticas. Harner criou o programa para apoiar financeiramente xamãs experientes na transmissão de conhecimento a novas gerações. Esse programa foi essencial para a preservação das tradições xamânicas, fornecendo recursos para que mestres xamânicos pudessem continuar ensinando e treinando novas gerações.
O xamanismo é a prática espiritual mais antiga da humanidade. É encontrada praticamente em todo o mundo e desde tempos muito remotos, remontando a pelo menos 30.000 anos. Frequentemente mal compreendido, o xamanismo foi reprimido pelo colonialismo e pela Igreja Católica, que não queria que as pessoas tivessem um contato direto com a espiritualidade. A Igreja queria que as pessoas passassem por intermediários, e era ela quem podia fazer essa ponte entre o mundo superior e o mundo inferior, além de vender indulgências. Tratava-se, no fundo, de poder e consolidar um tipo de visão. Hoje uma dinâmica semelhante acontece por meio da ciência, que define o que é ou não um conhecimento aceitável.
Harner destacou que muitas tradições religiosas, como o cristianismo, o sufismo e o budismo, possuem raízes xamânicas. Essas tradições se desenvolveram a partir de experiências diretas com o sagrado, mas ao longo do tempo foram institucionalizadas, perdendo parte de sua essência vivencial. No entanto, em seu cerne, ainda carregam os princípios fundamentais do xamanismo, como a busca pelo autoconhecimento e a interação com o mundo espiritual.
Para Harner, o xamanismo representa uma ecologia espiritual, onde tudo está vivo e interconectado. Ele argumenta que vivemos numa cultura de ausência do sagrado e que o renascimento do xamanismo pode restaurar nossa conexão com o mundo natural e espiritual. Seu trabalho nos ensina a viver em harmonia com o planeta e a reconhecer a importância da compaixão e do respeito por todos os seres. O entendimento de que toda a natureza é sagrada e que os seres humanos são apenas uma parte desse grande sistema vivo é um dos ensinamentos centrais do xamanismo.
Além disso, Harner destacou que o xamanismo tem um impacto significativo na saúde mental e emocional. Muitas pessoas que participaram de seus workshops relataram experiências de cura profundas, superação de traumas e um senso renovado de propósito na vida. A jornada xamânica permite acessar conhecimentos e curas que vão além do que é possível no estado ordinário de consciência, podendo ser uma ferramenta poderosa para o autoconhecimento e a transformação pessoal.
O trabalho de Harner influenciou diversas áreas, incluindo a psicologia, a medicina alternativa e a espiritualidade contemporânea. Seu método permitiu que ocidentais experimentassem diretamente o mundo espiritual sem a necessidade de aderir a uma tradição específica. Assim, ele criou uma ponte entre a sabedoria ancestral e a sociedade moderna, possibilitando que o xamanismo fosse reconhecido como uma prática valiosa e relevante para o mundo contemporâneo.
Seu legado continua vivo através da Foundation for Shamanic Studies, organização que fundou para garantir que o conhecimento xamânico fosse preservado e transmitido às futuras gerações. A fundação oferece cursos, pesquisas e apoio a comunidades indígenas, consolidando o trabalho de Harner como um dos mais importantes na preservação e disseminação do xamanismo.
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