O enigma do ator resolvido

Por Dado Salem
Abril 2025



Imagine a vida como um grande teatro, no qual cada pessoa recebe um papel único para atuar. No entanto, esse papel não é revelado claramente. Ele precisa ser descoberto, decifrado como um enigma. O autor deixa pistas aos atores nas suas inclinações naturais, nos talentos inatos, nas preferências, interesses e nas paixões que surgem sem razão aparente. O autor não entrega um roteiro pronto, mas distribui indicações sutis que exigem sensibilidade e atenção para serem percebidas. Cabe ao ator utilizar seus sentimentos, sua intuição, seu pensamento e suas sensações para decodificá-las e integrar seu personagem a si.

O autor não é um tirano que dita ordens, mas uma inteligência criativa que mostra uma direção. Descobrir a intenção do autor é o caminho para que o ator encontre sentido e coerência na sua atuação.

Nesse palco convivem milhares de atores em condições semelhantes. Alguns entram em cena antes e, com base na sua experiência, procuram ensinar aos mais novos os códigos para desvendar seus próprios papéis. Porém, o autor frequentemente apresenta desafios. Nem sempre o ator inicia sua jornada num ambiente favorável à descoberta e ao desenvolvimento de seus talentos e personagem. Muitas vezes, o ator se depara com diretores críticos e autoritários, que exigem interpretações, papéis e desempenhos contraditórios à sua natureza.

Essa situação desperta conflitos. Sua intuição sinaliza que algo está errado, mas influenciado pela racionalização e por conselhos externos, o ator pode acabar se submetendo e, convencido de que as coisas são assim mesmo, desviar de seu papel original. Daí nascem o drama e a tragédia pessoal.

Para apimentar um pouco mais, ainda há a influência da plateia. Os atores quase sempre acabam se deixando levar por esse coletivo, composto pelos padrões sociais, pressões culturais, modas e expectativas externas. Embora seja natural o ator buscar aprovação e reconhecimento, a dependência excessiva dessas influências pode levar ao distanciamento do seu papel, fazendo com que ele se perca numa atuação artificial voltada para satisfazer os ideais coletivos. Essa desconexão, cedo ou tarde, cobra seu preço.

Quando o ator não está desempenhando o seu verdadeiro papel, ele é tomado por um incômodo, uma inquietação que o acompanha como uma sombra silenciosa. É uma sensação de estranhamento e desconexão, como se estivesse vestindo uma roupa que não lhe cabe ou usando palavras que não reconhece como suas. Nesses momentos, mesmo cercado de aplausos, reconhecimento e recebendo cachês milionários, ele se sente vazio, pois no fundo sabe que está vivendo uma vida emprestada, distante de sua essência. Esse desconforto se manifesta por meio de um desânimo persistente, sinalizando que algo está fora do lugar, e que é preciso coragem para abandonar o personagem falso e se reencontrar consigo mesmo.

Nessa peça, o ator só se torna plenamente satisfeito quando consegue combinar seu desejo com o do personagem. Nesse momento desaparece a separação entre quem ele é e aquilo que faz. O conflito interno dá lugar a um sentimento de integridade e harmonia, onde agir não é mais esforço, mas expressão genuína do seu próprio ser. Não trata mais apenas de interpretar bem um papel, mas de vivê-lo com tanta verdade que a vida, antes marcada por dúvidas e inquietações, se transforma num cenário de realização.

Dentre os atores existem alguns que funcionam como guias ou mentores sensíveis. Estes compreendem a intenção do autor e, conhecendo o perfil de cada ator, ajudam a se expressar autenticamente. Eles orientam com sensibilidade e respeito à individualidade, pois sabem que o bom ator não finge sentimentos e procura estar profundamente integrado com seu personagem de maneira espontânea.

Esses mentores colocam a autocompreensão e a intencionalidade no centro do drama. O principal trabalho do ator é, portanto, a descoberta de si, alinhar e realinhar quando necessário, suas ações e decisões com o desejo do seu personagem. Isso ajuda a cumprir o papel proposto pelo autor, de maneira que liberdade e destino, ator e personagem, se conjuguam. Esse alinhamento resulta numa sensação de integridade. É como uma planta ou animal encontrando seu habitat, tudo parece estar onde deveria.

Quando o ator alcança esse estado, a peça deixa o roteiro de dramas e conflitos intermináveis e o palco se transforma num espaço onde a vida se revela em plenitude e beleza, com seus altos e baixos naturais. Cessam as buscas e o desejo do ator passa a ser aproveitar o que aí está. Onde havia falta agora há o bastante. A vida ganha sentido e se torna prazerosa. Essa transformação é o enigma do ator resolvido, quando a vida deixa de ser encenação e se torna expressão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário