Março 2025
Advertência: Esta interpretação de O Mercador de Veneza independe de qualquer conotação religiosa associada a Shylock e deve ser analisada sob um viés simbólico. Shakespeare, como homem de seu tempo, reproduziu preconceitos antissemitas, comuns da sociedade inglesa da época, criando uma caricatura que reforça estereótipos negativos. No entanto, para além dessa camada histórica, a peça representa uma reflexão sobre a oposição entre materialismo e transcendência. Shylock, desprovido de qualquer identidade religiosa nessa leitura que faço aqui, representa o arquétipo do homem preso à matéria, ao cálculo racional e à ilusão de que a riqueza é uma métrica de sucesso na vida. Ele não simboliza um grupo específico de pessoas, mas aquele que valoriza o acúmulo de bens acima da sabedoria e da harmonia. Shakespeare, mesmo permeado por seus próprios preconceitos, escreveu uma peça que pode ser lida como um tratado sobre a superação do materialismo.
Advertência: Esta interpretação de O Mercador de Veneza independe de qualquer conotação religiosa associada a Shylock e deve ser analisada sob um viés simbólico. Shakespeare, como homem de seu tempo, reproduziu preconceitos antissemitas, comuns da sociedade inglesa da época, criando uma caricatura que reforça estereótipos negativos. No entanto, para além dessa camada histórica, a peça representa uma reflexão sobre a oposição entre materialismo e transcendência. Shylock, desprovido de qualquer identidade religiosa nessa leitura que faço aqui, representa o arquétipo do homem preso à matéria, ao cálculo racional e à ilusão de que a riqueza é uma métrica de sucesso na vida. Ele não simboliza um grupo específico de pessoas, mas aquele que valoriza o acúmulo de bens acima da sabedoria e da harmonia. Shakespeare, mesmo permeado por seus próprios preconceitos, escreveu uma peça que pode ser lida como um tratado sobre a superação do materialismo.
Alguns anos atrás, lendo as obras de Freud, me deparei com um texto chamado O tema da escolha do cofrinho. Nele, Freud analisa um episódio do Mercador de Veneza de Shakespeare, no qual um rapaz deveria escolher entre três cofres – um de ouro, outro de prata e um terceiro de chumbo – para encontrar o retrato da bela Portia e conquistar o direito de se casar com ela.
Muito antes de conhecer a interpretação de Freud, essa mesma passagem já havia me intrigado. Na ocasião me dediquei a decifrar seu significado simbólico. Quando li a interpretação de Freud, fiquei surpreso com a diversidade de leituras que um texto pode despertar. Compartilho aqui a interpretação que fiz, em sua maior parte, por volta de 2010.
Antônio, um rico mercador de Veneza, está triste mas não sabe o motivo. Seus amigos não têm dúvidas de que essa angústia vem das embarcações, carregadas de mercadorias, que estão em pleno oceano. “Com tanta carga no mar, a maior parte de minhas afeições navegaria com minhas esperanças” afirma um deles. “Antônio está triste de tanto pensar em suas cargas”, acredita outro. Antônio discorda. Seu patrimônio está dividido em vários barcos que navegam por regiões diferentes, e mesmo se todos afundassem ainda teria outros haveres. Como reza a sabedoria da gestão patrimonial, seus ovos não estavam na mesma cesta. Não havia motivo para se preocupar. “Então está amando!”, presumiram. Segundo Antônio, também não era esse o problema (como se amar fosse um problema) e conclui: “o mundo, para mim, é o mundo apenas [...] um palco em que representamos, todos nós, um papel, sendo o meu, triste”.
Apesar da riqueza, a vida de Antonio era sem graça. Ela girava em torno dos negócios, mas esses não preenchiam sua alma. A tristeza era considerada pelos antigos uma doença – Apathos, apatia, sem paixão. Antônio tem dinheiro, mas não ama, sua vida é deserotizada. Não falamos aqui do Eros da sexualidade, que busca os belos corpos, mas do Eros mais evoluído, que busca o belo em outras instâncias e conduz a uma vida plena e apaixonada, a erotização da personalidade total.
Personalidade total não se reduz à persona, a máscara social que muitas vezes se confunde com a identidade autêntica. Sempre vemos proliferar figuras que, preocupadas com sua imagem e marketing pessoal, procuram se moldar para corresponder a expectativas externas em busca de distinção, reconhecimento, sucesso e fama. A personalidade total não é um artifício, mas uma expressão genuína do ser, aquilo que os antigos chamavam de Ethos – o que se é por natureza.
Nesse caminho de autorrealização, Eros desempenha um papel essencial, embora muitas vezes seja mal interpretado ou reduzido à sua dimensão puramente sexual. Eros é um princípio orientador, uma força vital que impulsiona o indivíduo a seguir sua verdadeira natureza. É uma bússola interna que aponta para o que faz sentido e ressoa profundamente, conduzindo a um estado de plenitude e autenticidade.
No entanto, esse Eros precisa de uma espécie de freio para não cair em seu oposto – a Hybris, a desmedida, o exagero, a inflação do ego. Esse freio, necessário para o desenvolvimento da personalidade, foi representado simbolicamente pelos povos orientais como um falo ereto com uma cobra enrolada em torno com sua cabeça deitada sobre o orifício peniano, como que impedindo a ejaculação. A prática indiana denominada Tantra, tem esse mesmo princípio de controle do orgasmo ligado ao desenvolvimento psíquico. Para essa função de freio, a psique humana é dotada de Logos, o intelecto. Logos é uma razão ordenadora do Universo, uma capacidade de reflexão que inclui a ordem e a beleza.
Assim, a jornada para a personalidade total não é um processo de acumular máscaras ou aprimorar a persona social, mas de integrar e equilibrar as forças internas, permitindo que o indivíduo se torne, de fato, aquilo que já é em essência.
A vida de Antônio, sem Eros, era portanto uma desgraça.
Chega Bassânio – jovem, bonito, amigo e devedor de Antônio – que dilapidou estupidamente sua fortuna sustentando um estilo de vida mais dispendioso que suas rendas podiam suportar. Agora, mais experiente, diz não se importar em abrir mão da opulência. Antônio é seu maior credor, por isso, recorre a ele com um plano para quitar seus débitos.
Bassânio está apaixonado pela bela, solitária e milionária Portia. Um poeta como Shakespeare não usa nomes ao acaso. São palavras subsequentes no dicionário Webster: Portia [Porta], portal, porch, portion.– an individual’s lot, fate or fortune – one’s share of good and evil. Portia é a representação de um portal de acesso à verdadeira fortuna - a sorte, a felicidade, o destino - que em termos filosóficos significa ser o que se é por natureza, a plena realização do indivíduo, ocupar o seu lugar no mundo, aceitar seu quinhão, atuar seu verdadeiro papel na vida... idéia melhor resumida na frase arcaica grega, “torne-te quem és”.
Bassânio recebe olhares animadores de Portia. Esses olhares são mais do que simples sinais de aprovação. Eles indicam que ele está se aproximando de si mesmo. Bela, rica e cheia de virtudes, Portia vive em Belmont, belo monte, símbolo de um estado elevado de consciência e harmonia.
Ela aguarda Bassânio assim como Penélope espera fielmente por Odisseu. Longe de serem "Amélias", figuras passivas, como algumas leituras sugerem, Portia e Penélope representam a alma do indivíduo, sua natureza essencial. Já Bassânio e Odisseu são egos em processo de desenvolvimento, atravessando desafios para amadurecer.
Esse tema é recorrente em contos de fadas, onde a jornada do herói reflete um caminho de individuação. Marie-Louise von Franz explorou extensivamente essas narrativas, frequentemente associando a figura feminina à alma e o herói ao ego — um diálogo simbólico que estrutura não apenas mitos e lendas, mas também o processo de transformação interior.
Se tiver os recursos necessários, Bassânio tem certeza de que será afortunado. Antônio não dispõe dos recursos para ajudar o amigo, mas oferece seu aval para que ele levante empréstimo em Veneza.Bassânio vai à cidade solicitar o dinheiro ao agiota Shylock, que significa, envergonhado + pequeno + trancado + fechado + obtuso... tudo em seu nome é para dentro. Representa o egocêntrico, o pequeno materialista. Antônio chega logo em seguida para garantir o negócio. No entanto, Shylock guarda uma antiga inimizade pelo rico mercador, decorrente de insultos recebidos por viver de juros. Faz então uma proposta engenhosa: oferece o dinheiro sem juros, na condição de que se Antônio não quitar a dívida na data, local e hora previstos em contrato, poderá retirar uma libra de carne de seu corpo a ser cortada de onde ele [Shylock] desejar.
Adiante no texto descobrimos que essa libra de carne (carnal, material, materialista) que Shylock deseja é o seu coração. Seu coração será arrancado pelo contrato que tem assinado com o materialismo, com o egoísmo, com o egocentrismo. Em inglês flesh significa pedaço de carne e a parte sensual da natureza humana. Bassânio protesta, mas Antônio aceita o compromisso.
Portia é uma mulher muito desejada, mas seu falecido e sábio pai preparou um enigma que os pretendentes de Portia deveriam responder para poder desposá-la. Trata-se de um teste simbólico de discernimento, destinado a separar aqueles que escolhem com base em ilusões externas e desejos materiais, daqueles que são capazes de enxergar além, o mundo espiritual. O enigma dos cofres não é um capricho de um pai controlador, mas um rito de passagem iniciático, um desafio colocado pelo arquétipo do Mestre, para testar a alma do candidato e garantir que, apenas aquele que vai além das ilusões do mundo material, poderá alcançar a sabedoria e o mundo divino.
Cada cofre – ouro, prata e chumbo – representa um caminho diferente e reflete a jornada iniciática do indivíduo em busca da sabedoria e do desenvolvimento espiritual. O cofre de ouro representa a ilusão do mundo sensorial, a busca pelo poder e pela riqueza como fonte de realização, que inevitavelmente leva à desilusão. O cofre de prata simboliza a arrogância e o orgulho intelectual, representa aqueles que buscam o conhecimento e a verdade apenas pela razão, sem humildade nem sensibilidade para o que está além do material. O chumbo, na tradição alquímica, é a matéria bruta que precisa ser transformada no ouro filosofal, ou seja, na plenitude do ser. Ele representa a busca da sabedoria, da humildade e da transformação interior.
Príncipes do mundo inteiro fazem longas jornadas, com ricas caravanas, para tentar a sorte dos cofres e obter a graça de se casar com Portia.
Entra o príncipe de Marrocos – a perfeita representação de um materialista deslumbrado. Portia faz cara feia e lamenta não poder escolher, apesar de seu pai ter criado uma engenhosa loteria que só um pretendente consciente e que a amasse verdadeiramente, conseguiria acertar. O pai dela, podemos inferir, é uma espécie de sábio ou filósofo, condutor de almas. Shakespeare, como bom poeta, utiliza com sutileza suas representações.
Marrocos olha para o cofre de chumbo e lê a inscrição: “Quem me escolher arrisca e dá o que tem”. “Arriscar tudo por chumbo? É ameaçadora essa sentença. Quem tudo arrisca, espera grandes lucros. Um espírito de ouro não se importa com rebotalhos vis. Não arriscarei nada e não darei nada por esse chumbo”, refletiu ele. Passa então para o cofre de prata. “Quem me escolher, ganha o que bem merece”. “Ora, essa dama mereço-a pelo berço, pela sorte, por minha educação e qualidades, mas pelo amor mereço-a mais ainda. Mas vejamos o que diz o cofre de ouro”: “Quem me escolher ganha o que muitos querem”. “É a donzela!” exclama o Marrocos. “Muitos a querem. Dos quatro cantos chegam peregrinos”. Ele pede a chave e abre rapidamente. Para sua decepção e horror ele encontra uma caveira em cujo orifício ocular repousa um tubo de papel com as seguintes palavras:
Nem tudo que reluz é ouro,
Proclamam os sábios em coro.
Muita gente acaba em choro
Por só procurar tesouro.
Mausoléus são comedouro
De vermes em fervedouro.
Se houvesse sabedoria
Nessa vossa cortesia,
A consulta não faria
Turvar-vos a fantasia [...]
Desolado, Marrocos se retira com seu séquito. Pouco tempo depois, entra o pomposo príncipe de Aragão. Essa associação é clara: Aragon, arrogante – aquele que exagera seu próprio valor. Dirige-se aos cofres:
“Quem me escolher, arrisca e dá o que tem” lê Aragão no cofre de chumbo. “Sem que mais belo fique, nada arrisco nem dou por tua causa. E no cofre de ouro?” “Quem me escolher, ganha o que muitos querem”. “Esse muitos pode significar a multidão ignorante que escolhe pelas aparências. O que muitos querem não me agrada, pois não quero igualar-me a todo mundo, nem confundido ser com o povo bárbaro”, reflete ele com soberbia. Por fim vai ao cofre de prata. “Quem me escolher, ganha o que bem merece”. “Ninguém tenha a ousadia de arrogar-se honras imerecidas. Se os estados, ofícios, posições não fossem dados por maneira corrupta, e as honrarias só fossem conquistadas pelo mérito, quantos esconderiam aquilo que mostram, quantos que comandam seriam comandados e quantas coisas hoje desprezadas seriam elevadas”. Aragão decide ganhar o que bem merece e abre o cofre de prata: “mas o que vejo? A figura de um idiota”. Shakespeare não pode ser mais claro. Quantos fazem sucesso se arrogando valer o que não valem; quantos mandam sem ter dignidade, retidão e pureza em sua alma; quantos buscam o conhecimento por meio da razão apenas, sem humildade nem sensibilidade; quantas pessoas se sentem elevadas e no fundo não passam de idiotas!
Más notícias chegam a Veneza. Barcos de Antonio afundaram vítimas de tempestades provocando grandes perdas. Sua falência parece inevitável. Shylock é consultado a respeito e diz enfaticamente que vai querer o combinado caso não seja pago na data combinada. Será sua vingança por ter sido insultado. Shylock fica feliz com as mas notícias que não param de chegar a respeito dos barcos de Antonio.
Bassânio chega a Belmonte e é anunciado com entusiasmo pelos assessores de Portia, que torce para que ele faça a escolha certa. Uma música toca ao fundo:
Diga-me de onde surge a paixão,
do coração ou da cabeça?
como é gerada? como é nutrida?
Responda, responda.
Nos olhos se forma e se cria;
Cresce e morre a fantasia,
No leito em que viu o dia.
A música serve como um conselho sutil para Bassânio, orientando-o a não julgar pelas aparências e a buscar um amor e um destino baseados na verdade, e não na ilusão. O verdadeiro valor, portanto, não está no ouro nem na prata, mas na humildade e na simplicidade, simbolizadas pelo cofre de chumbo.
Bassanio é levado para a sala onde estão os três cofres e diante deles exclama:
“O mundo ainda é iludido pelas aparências e pela opulência. No direito, quantos argumentos mentirosos e corruptos, quando ditos de maneira eloqüente, escondem a maldade? Na religião, quantos erros diabólicos são abençoados por uma aparência sóbria, escondendo a brutalidade com belos ornamentos? [...] Os ornamentos são a praia da falsidade. [...] a aparência de verdade que esses tempos maliciosos estabeleceram como armadilha para os mais inteligentes. Então ouro chamativo e cafona, duro alimento para Midas, não escolho você. Nem você pálida prata – intermediária fatigante entre os homens. Escolho você humilde chumbo, que mais ameaça que promete. Sua simplicidade me move mais que a eloqüência. E aqui eu escolho! Que a felicidade seja a conseqüência! [...] Oh Amor, seja moderado, acalme esse êxtase, alivie esse excesso! Eu me sinto muito agraciado. Faça um pouco menos pois tenho medo dos excessos.”
Bassanio abre o cofre:
O que vejo aqui? A imagem da bela Portia [...], em seguida pega um texto dentro do cofre: “Você que não escolhe pelas aparências, grande sorte, escolha acertada! É afortunado, por isso esteja satisfeito e guarde sua sorte para sua bem-aventurança. Vire-se para sua mulher e peça um beijo amoroso”.
Os dois se beijam e fazem juras de amor. Ela lhe dá uma aliança que simboliza a união. Portia declara que a partir daquele momento, ela e todas suas posses, pertencem a ele. Portia representa as bênçãos e alegrias do paraíso na terra, coisa que raramente se encontra, e por isso Bassânio deve viver de acordo para merecê-la.
Entra um mensageiro de Veneza. Traz más notícias. Antonio perdeu sua frota e agora depende de Bassânio para pagar o débito com Shylock. Portia percebe a palidez no rosto de Bassânio e pergunta o que aconteceu. Bassânio lembra que quando se conheceram e ele comunicou seu amor por ela afirmou que toda sua riqueza corria em suas veias. No entanto, quando disse que seu patrimônio era zero, exagerou, na verdade ele era menor que nada, ou seja estáva em débito. Esclarece a respeito do empréstimo que pegou com Antonio e do acordo que este fez com Shylock para obter o dinheiro.
Antonio atrasa o pagamento. Shylock, por causa dos insultos que já ouviu de Antonio, está irredutível e pretende exercer o direito de retirar uma libra de carne do devedor. Afirma que mesmo se oferecessem 20 vezes o valor do débito, se recusaria a mudar de idéia. Portia oferece as tais 20 vezes o valor para Bassânio resgatar o amigo. Ele parte para Veneza a fim de salvar Antonio.
Entram todos na Corte de Justiça. O Duque de Veneza diz que quem decidirá esse caso é Bellario um sábio doutor de Padua. Bellario é primo de Portia. Sabendo que ele seria escolhido para decidir aquela disputa, Portia pede para substituí-lo na corte, devidamente orientada por ele. Portia entra disfarçada de um jovem doutor romano, recomendado por Bellario, que afirma estar adoecido e por isso não pode comparecer à corte.
A presença de Portia como juíza transcende a simples inversão de papéis de gênero. O disfarce masculino, unindo os princípios masculino e feminino, ao se vestir como juiz, Pórtia simboliza a androginia sagrada, conceito presente na alquimia que significa a representação da integração do Logos (razão masculina) e do Eros (sabedoria intuitiva feminina). Ela simboliza a justiça divina. Portia é uma Sophia oculta, que na tradição hermética se manifesta para restaurar a ordem e revelar a justiça verdadeira.
Começa o julgamento, Portia tenta dissuadir Shylock, pedindo que tenha piedade do mercador. Lembra que está sendo oferecido 3 vezes o valor do débito. Mas Shylock insiste em exercer seu direito e pela aplicação rigorosa da lei da matéria, do contrato inflexível, representando o mundo materialista e rígido.
Portia pede para ver o título e diz que segundo aquele documento Shylock pode retirar uma libra de carne de Antonio e autoriza que o credor tome o que lhe é de direito.
Shylock fica eufórico com a decisão. Portia determina que ele pode retirar uma libra de carne do mercador, no entanto, o título não o permite derramar uma gota de sangue sequer e se isso ocorrer, ao cortar a libra de carne que lhe pertence, pelas leis de Veneza, todos seus bens serão confiscados.
A solução que Portia apresenta, a impossibilidade de derramar sangue, demonstra que a justiça não se resume na letra da lei, mas na compreensão do seu espírito e aplica uma justiça que transcende o dogmatismo. A justiça que Portia aplica não nega a lei, mas a redimensiona, mostrando que o caminho justo não está na punição, mas na transmutação da experiência em aprendizado. Esse é um dos princípios da alquimia, transformar chumbo em ouro, sofrimento em evolução.
Após a resolução do julgamento em Veneza, Bassânio, agradecido ao juiz que salvou a vida de Antônio (sem saber que este juiz era Portia disfarçada), oferece um presente como recompensa. Portia, ainda disfarçada, recusa inicialmente, mas então faz um pedido específico. Pede o anel que Bassânio carrega no dedo. Esse anel foi dado a Bassânio pela própria Portia como símbolo de seu amor e compromisso, com a promessa de que ele jamais o removeria. Num primeiro momento, Bassânio reluta, lembrando-se do valor sentimental da joia, mas, pressionado por Antônio e querendo demonstrar gratidão ao juiz, ele acaba cedendo e entrega o anel.
O anel, símbolo do ouro filosófico, da totalidade e da união do espírito-matéria, não deveria ter sido entregue tão facilmente, pois representava a conexão entre ele e Portia, a própria manifestação da Sophia. Ao ceder o anel, Bassânio demonstra que ainda não compreendeu completamente o valor da essência sobre as aparências.
Após o julgamento, Bassânio volta para Belmont, onde Portia o espera. Esse retorno representa a ascensão a um nível superior de consciência. Se Veneza é o mundo material, onde o ego e a matéria se misturam, Belmont é o símbolo de um estado elevado de consciência. Esse retorno não é apenas físico, mas significa que ele agora pode viver com um nível mais profundo de compreensão.
Portia recebe Bassânio novamente, reforçando que ele passou na provação e agora está pronto para integrar-se a uma sabedoria mais elevada. Ele escolheu o cofre de chumbo, aceitou a humildade e a natureza da vida, e agora pode desfrutar da plenitude.
Num último desafio, Portia pede o anel que deu a Bassiâno. O anel que simboliza a aliança sagrada entre o espírito e a matéria, o consciente e o inconsciente, o divino e o humano. Quando Bassânio cedeu seu anel ao falso juiz (Portia disfarçada), ele demonstrou ainda não compreender plenamente a natureza desse vínculo sagrado. No entanto, quando a verdade é revelada e Portia devolve o anel a Bassânio, isso marca a restauração da união – o casamento sagrado, não apenas físico, mas espiritual.
Shakespeare, apesar dos seus preconceitos, parece ver a vida como um teatro, montado para os seres viverem uma experiência e realizarem algo que lhes é próprio. Mas como diz Tolstoi, há quem passe por um bosque e só veja lenha para sua fogueira. Esse plano material, onde a existência é governada pela necessidade física, pelos ativos tangíveis ao qual Shylock e muitos se prendem, é o ponto de partida da jornada espiritual.
Antonio, por outro lado, se move no plano das emoções, acometido por uma melancolia aparentemente inexplicável, com sua alma presa entre o apego material e a busca por algo além, investido na sua amizade por Bassânio.
A trajetória de Bassânio é a jornada de transcendência, saindo da dependência material de suas dívidas e apego emocional na sua amizade com Antonio, em direção ao plano espiritual, onde a sabedoria, o amor e a harmonia reinam. Entre a opulência do ouro e a aparência da prata, ele escolhe o modesto chumbo, a humildade necessária para a elevação. O casamento de Bassanio e Portia, figura de inteligência divina, que une justiça e amor, é uma metáfora da realização plena, da integração do ser, onde Eros e Logos trabalham juntos para guiar o indivíduo ao seu destino essencial.
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