Maio 2025
Pedalei 10 dias sozinho pelo Caminho da Fé, na divisa entre São Paulo e Minas Gerais, partindo de Águas da Prata e chegando em Luminosa. Compartilho aqui algumas notas da minha experiência.
Não me considero uma pessoa de fé no sentido tradicional, que envolve crença sem evidências. Para mim, a espiritualidade é uma dimensão tão real quanto o mundo físico, e é algo com que eu interajo diretamente. Não se trata de acreditar em algo sem ver, mas de viver experiências concretas e pessoais, nas quais converso e aprendo com seres espirituais. Isso faz parte de uma tradição antiga, conhecida como xamanismo, que é baseada na prática, na relação, no respeito e, acima de tudo, na escuta.
Vou fazer uma breve análise da viagem em vários planos: físico, emocional, social e espiritual.
Plano físico: Meu corpo foi o primeiro mestre da minha jornada. Desde o início foi necessário um movimento de respeito ao meu próprio ritmo. Decidi pedalar menos e devagar, descansar, ouvir o que meu corpo pedia. A altimetria, o peso da bagagem, empurrar a bicicleta em algumas subidas muito íngremes, tudo isso foi trazendo à tona a realidade concreta do caminho. Meu corpo, mais do que meus pensamentos, ditou a experiência: “é hora de ir devagar”, “é hora de parar”, “é hora de comer”, “é hora de beber”, “é hora de contemplar”.
Plano emocional: Meus sentimentos estiveram presentes em encontros casuais, não planejados, mas muito significativos. Um amigo no ponto de partida, a atendente de uma farmácia, um grupo de Sacramento-MG, uma médica peregrina de Porto Alegre, moradores de áreas rurais, um barbeiro, um homem do campo que às 6:15 da manhã me salvou de uma roubada e me escoltou por 3km na Rodovia Fernão Dias. Grupos de ciclistas acelerados que com quem pedalei alguns trechos me oferecendo água, comida e palavras de incentivo. Pequenos gestos de gentileza formam uma rede de acolhimento, uma corrente de solidariedade que é a linha condutora desse caminho, possível reconhecer desde o início da jornada. Cada conversa, indicação de parada, pousada ou restaurante, cada gesto de ajuda, faz vc se sentir amparado o tempo todo. Não me senti sozinho.
Plano social: observar as cidades, as pessoas, os modos de vida, as nuances como a simpatia dos moradores de Poços de Caldas, a vida modesta e honesta das pequenas vilas como Tócos do Moji e Consolação. Captar fenômenos sociais maiores como a questão da falta de mão de obra, a importância dos programas de transferência de renda, o problema de alcoolismo dos homens, a violência às mulheres, o acúmulo de empregos para compor a renda das famílias. A viagem me despertou um olhar atento, respeitoso, mas com uma curiosidade social quase etnográfica.
Plano espiritual: A notícia da morte do Papa Francisco na chegada a Ouro Fino, o hábito diário de uma viagem xamânica, a leitura gradual do Novo Testamento para entrar em sintonia com os peregrinos e as igrejas. As orações feitas antes de partir pela manhã, as frases ao longo do caminho, os símbolos, tudo foi compondo um sentido mais profundo na trajetória. Entrar na Basílica de Nossa Senhora do Carmo, padroeira do dia em que eu nasci (16/7), ler na porta dessa igreja um texto curto sobre as mães que nunca abandonam seus filhos e minha mãe me ligar nesse exato momento, (ela me liga uma vez por mês atualmente). Eu não estava apenas fazendo um percurso, mas envolvido num território simbólico, sagrado. Pontos do caminho com nomes como "Consolação", “Cantagalo”, "Paraisópolis", "Luminosa", “Ouro Fino”, reforçam a leitura quase alquímica do percurso. O peregrino não está apenas indo de A a B, ele está se transformando ao longo do caminho.
Há uma diferença entre "querer chegar" e "estar presente". Enquanto uns buscavam o final, a meta, outros já estavam onde queriam. Para esses o Caminho era o destino. Isso gerava uma serenidade e a vontade de querer prolongar a viagem ao invés de apressá-la. Talvez seja maturidade.
A beleza do caminho está no alinhamento entre paisagem, gesto, presença e sentido.
O caminho é uma mistura entre o concreto e o simbólico. Pequenas cenas aparentemente comuns, como fazer a barba com o Sr. Ezequiel, conversar na praça, ver uma havaiana bicolor nos pés de um senhor que me indicou a melhor comida de todo o percurso, se misturam com experiências espirituais profundas. Isso é raro e precioso. O Caminho não é um feito, é uma experiência que compõe todos esses planos. Me levou a uma dimensão mais Luminosa de mim mesmo e do mundo. Foi, acima de tudo, uma aula de solidariedade e gentileza.
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