Psicopolítica de uma guerra comercial

Por Dado Salem
Abril 2025




Donald Trump lançou uma agressiva guerra comercial contra o mundo e especialmente contra a China. Muitos observadores a interpretaram como uma manobra estratégica, uma tática econômica voltada para reequilibrar déficits comerciais e restaurar a indústria doméstica. Mas sob a superfície política e econômica há outra camada sensível, as forças psicológicas que impulsionam o comportamento do homem no centro disso tudo.

Para entender o desfecho provável de uma crise como essa, é preciso reconhecer que não se trata apenas de um confronto geopolítico, mas também de um drama psicológico, profundamente ancorado na personalidade de Trump. Do ponto de vista psicológico, diversos padrões recorrentes se tornam evidentes.

O enigma do ator resolvido

Por Dado Salem
Abril 2025



Imagine a vida como um grande teatro, no qual cada pessoa recebe um papel único para atuar. No entanto, esse papel não é revelado claramente. Ele precisa ser descoberto, decifrado como um enigma. O autor deixa pistas aos atores nas suas inclinações naturais, nos talentos inatos, nas preferências, interesses e nas paixões que surgem sem razão aparente. O autor não entrega um roteiro pronto, mas distribui indicações sutis que exigem sensibilidade e atenção para serem percebidas. Cabe ao ator utilizar seus sentimentos, sua intuição, seu pensamento e suas sensações para decodificá-las e integrar seu personagem a si.

O autor não é um tirano que dita ordens, mas uma inteligência criativa que mostra uma direção. Descobrir a intenção do autor é o caminho para que o ator encontre sentido e coerência na sua atuação.

Nesse palco convivem milhares de atores em condições semelhantes. Alguns entram em cena antes e, com base na sua experiência, procuram ensinar aos mais novos os códigos para desvendar seus próprios papéis. Porém, o autor frequentemente apresenta desafios. Nem sempre o ator inicia sua jornada num ambiente favorável à descoberta e ao desenvolvimento de seus talentos e personagem. Muitas vezes, o ator se depara com diretores críticos e autoritários, que exigem interpretações, papéis e desempenhos contraditórios à sua natureza.

A cosmovisão de Michael Harner - um mapa da realidade espiritual

Por Dado Salem
Março 2025

O antropólogo norteamericano Michael Harner, mudou a compreensão ocidental sobre o xamanismo. Harner estudou profundamente culturas indígenas em vários continentes, revelando um mapa da realidade espiritual. Ele abriu novas portas para a percepção humana com estados alterados de consciência sem o uso de alucinógenos. Um legado indispensável para quem busca sabedoria, espiritualidade e harmonia com a natureza.




Michael Harner, antropólogo norte-americano doutor pela Universidade de Berkeley, pioneiro no estudo do xamanismo, considera que sua formação real foi com os povos indígenas, porque foram eles seus verdadeiros professores. Harner começou na arqueologia, e acabou entrando em contato com povos indígenas pedindo ajuda para entender o que estava desenterrando nos desertos do Arizona e da Califórnia. Assim adquiriu um respeito por eles como fontes de conhecimento.

Em 1956 Harner conseguiu uma bolsa de estudos para viajar para a América do Sul para fazer um estudo etnográfico nas selvas do leste do Equador. Naquela época ele não sabia nada sobre xamanismo e com sua visão acadêmica moderna, pensava que xamãs eram pessoas malucas. Mas à medida que foi fazendo perguntas, aos poucos foi entendendo que eram capazes de mudar sua consciência à vontade para curar pessoas e para ver coisas que outras pessoas não enxergavam.

Depois, Harner foi convidado para uma expedição nas as selvas do Perú, onde encontrou um grupo isolado, num local remoto e lá ficou quase um ano. Num dado momento, viu 5 homens fazendo algo que não entendeu e perguntou se podiam explicar. Eles disseram que não, que se ele quisesse saber teria que experimentar por si mesmo, e ofereceram Ayahuasca. Harner aceitou... depois de uns 10 minutos ele começou a ver imagens no teto da choupana onde estavam. Teve visões profundas e compreendeu a sabedoria dos xamãs. Quando saiu da experiência, os indígenas disseram que nunca tinham conhecido alguém que em sua primeira experiência tivesse tanto conhecimento. E o xamã falou que ele poderia ser um mestre neste trabalho. Foi uma mudança de vida e desde então Harner passou a trabalhar com os xamãs. Sua experiência revelou que os xamãs não eram loucos, mas sim mestres do controle da consciência.

O Mercador de Veneza: o tema da escolha do cofrinho

Por Dado Salem
Março 2025


Advertência: Esta interpretação de O Mercador de Veneza independe de qualquer conotação religiosa associada a Shylock e deve ser analisada sob um viés simbólico. Shakespeare, como homem de seu tempo, reproduziu preconceitos antissemitas, comuns da sociedade inglesa da época, criando uma caricatura que reforça estereótipos negativos. No entanto, para além dessa camada histórica, a peça representa uma reflexão sobre a oposição entre materialismo e transcendência. Shylock, desprovido de qualquer identidade religiosa nessa leitura que faço aqui, representa o arquétipo do homem preso à matéria, ao cálculo racional e à ilusão de que a riqueza é uma métrica de sucesso na vida. Ele não simboliza um grupo específico de pessoas, mas aquele que valoriza o acúmulo de bens acima da sabedoria e da harmonia. Shakespeare, mesmo permeado por seus próprios preconceitos, escreveu uma peça que pode ser lida como um tratado sobre a superação do materialismo.





Alguns anos atrás, lendo as obras de Freud, me deparei com um texto chamado O tema da escolha do cofrinho. Nele, Freud analisa um episódio do Mercador de Veneza de Shakespeare, no qual um rapaz deveria escolher entre três cofres – um de ouro, outro de prata e um terceiro de chumbo – para encontrar o retrato da bela Portia e conquistar o direito de se casar com ela.

Muito antes de conhecer a interpretação de Freud, essa mesma passagem já havia me intrigado. Na ocasião me dediquei a decifrar seu significado simbólico. Quando li a interpretação de Freud, fiquei surpreso com a diversidade de leituras que um texto pode despertar. Compartilho aqui a interpretação que fiz, em sua maior parte, por volta de 2010.


Antônio, um rico mercador de Veneza, está triste mas não sabe o motivo. Seus amigos não têm dúvidas de que essa angústia vem das embarcações, carregadas de mercadorias, que estão em pleno oceano. “Com tanta carga no mar, a maior parte de minhas afeições navegaria com minhas esperanças” afirma um deles. “Antônio está triste de tanto pensar em suas cargas”, acredita outro. Antônio discorda. Seu patrimônio está dividido em vários barcos que navegam por regiões diferentes, e mesmo se todos afundassem ainda teria outros haveres. Como reza a sabedoria da gestão patrimonial, seus ovos não estavam na mesma cesta. Não havia motivo para se preocupar. “Então está amando!”, presumiram. Segundo Antônio, também não era esse o problema (como se amar fosse um problema) e conclui: “o mundo, para mim, é o mundo apenas [...] um palco em que representamos, todos nós, um papel, sendo o meu, triste”.

Antropologia do luxo

Por Dado Salem
Fevereiro 2025




O filósofo francês Gilles Lipovetsky fez um importante estudo sobre o luxo. Tive a oportunidade de assistir sua palestra no IPLA e depois jantar com ele, a convite de Jorge Forbes, no restaurante Le Vin - São Paulo, em 2012. Recentemente revisitei esse tema num curso de Antropologia do Consumo na PUC/RJ. Procurei resumir no texto abaixo, os principais pensamentos de Lipovetsky a partir de anotações da palestra.

O luxo tem sido um tema de debate filosófico por séculos e pode ser analisado de duas formas distintas. A perspectiva tradicional, enraizada no pensamento greco-romano, vê o luxo como sinônimo de orgulho e vaidade, algo moralmente condenável por ser supérfluo, desnecessário e ligado à decadência dos costumes. Para Platão, por exemplo, o luxo representava uma ameaça moral e social, associada à injustiça, pois poucos desfrutam dele enquanto muitos vivem na privação.

No entanto, podemos abordar o luxo de outra maneira, como um fenômeno antropológico. Em vez de julgá-lo moralmente, devemos compreender por que os seres humanos sempre foram atraídos pelo excesso e pelo desperdício e como o luxo transformou sociedades ao longo da história. Como ensinou Spinoza, é necessário primeiro compreender antes de condenar.

Em todas as sociedades conhecidas, o luxo sempre esteve presente, o que desbanca a ideia ultrapassada de que os primeiros humanos viviam exclusivamente em luta pela sobrevivência. A visão evolucionista do século XIX, defendida por Marx e Engels, sugeria que o luxo só surgiu quando as sociedades começaram a acumular riqueza. No entanto, a antropologia refuta essa tese, mostrando que formas de luxo existiam muito antes do Neolítico, antes da domesticação de plantas e animais, da cerâmica e da metalurgia.

Bayo Akomolafe

por Dado Salem
Fevereiro 2025

Por indicação de minha professora e amiga Celiane Camargo-Borges, tive o prazer de ver e ouvir pessoalmente o filósofo, psicólogo, poeta e escritor, Bayo Akomolafe. Aqui vão algumas impressões dessa palestra.




Bayo não tem pressa. Para ele, a velocidade com que buscamos soluções é parte do problema. O mundo que conhecemos, estruturado na lógica da modernidade, da justiça institucional, da psicologia clínica e da corrida pelo bem-estar, se sustenta na pressa de corrigir, de avançar, de se ajustar ao que já está posto. Para ele, a resposta não está na aceleração, e sim no desvio para outros caminhos.

Bayo nasceu na Nigéria, numa família cristã de tradição iorubá. Desde cedo, foi exposto a uma educação ocidentalizada que o distanciava dos saberes ancestrais de sua cultura. Formou-se em psicologia, fez um doutorado e atuou como professor universitário antes de perceber que os modelos acadêmicos tradicionais não ofereciam respostas satisfatórias para as questões mais profundas da vida.

Sua jornada tomou um novo rumo ao entrar em contato com o Candomblé no Brasil. Ali, testemunhou a permanência e a reinvenção das espiritualidades africanas, reconhecendo nelas um caminho alternativo ao pensamento científico. Sua transformação foi gradual, o levou a abandonar uma visão racionalista e adotar a fluidez das cosmologias africanas, onde a cura, a identidade e a justiça, são fenômenos relacionais e não individuais.

Pós-modernismo e a transformação da identidade

Por Dado Salem
Janeiro 2025




O surgimento do individualismo foi uma das maiores revoluções da civilização ocidental. Num mundo antes regido por coletividades, onde a identidade estava enraizada na família, na tribo e na tradição, a modernidade trouxe uma ruptura significativa ao colocar o indivíduo no centro da experiência humana. Essa transição, que se inicia no Renascimento e se consolida com a ascensão do Capitalismo, marca a passagem de sociedades hierárquicas para estruturas mais fluidas e pautadas pelo mérito e pela diferenciação pessoal.

Nas sociedades tradicionais, a identidade estava atrelada ao coletivo. O pertencimento a uma tribo ou a um grupo social determinava a posição de um indivíduo no mundo. A identidade era herdada, baseada no sobrenome, na ocupação da família e no respeito às tradições, ou seja, a comunidade oferecia um senso de pertencimento e suporte ao indivíduo. A manutenção do status era fundamental, e a vida tinha sentido na continuidade da linhagem. O sucesso era medido pelo cumprimento do papel social estabelecido e pelo legado deixado para as próximas gerações.

Com a modernidade, a racionalidade se torna um valor predominante, e a emoção é relegada ao espaço privado. A felicidade, antes um conceito coletivo, passa a ser um objetivo individual. Isso resulta num novo dilema existencial. Na ausência de um propósito herdado, cada um precisa construir o seu próprio sentido de vida. Dessa forma, a busca pela felicidade e pela realização pessoal se tornam centrais na experiência moderna, mas também geram angústia e solidão. 

Deuses imanentes, deuses transcendentes, ateísmo consumista e o futuro ancestral

Por Dado Salem
Janeiro 2025

A transformação dos deuses imanentes para os transcendentes, e posteriormente para o ateísmo, é um processo que reflete mudanças culturais, filosóficas, e históricas no modo como a humanidade se relaciona e interpreta a realidade. Os deuses, antes vivos e presentes, tornaram-se distantes, transcenderam, e por fim desapareceram, deixando o mundo vazio de sentido, que foi preenchido por marcas e coisas. Essa foi a transformação de um mundo mitológico para outro regido, supostamente, pela razão e, mais tarde, pelo dinheiro e pelo consumo. Mas, em meio ao silêncio deixado pelos deuses, surge uma pergunta: e se o futuro não estiver na busca ansiosa do novo, mas no calmo retorno ao ancestral? Talvez, ao resgatarmos o que esquecemos, possamos reencontrar a conexão perdida.





Deuses imanentes, vivos e presentes

Nas culturas mais antigas, a percepção do sagrado é imanente, ou seja, os deuses e os espíritos são forças vivas e integradas ao cotidiano das pessoas. Elas cultuam os elementos da natureza. As montanhas, os rios, o vento, o fogo, a lua, o sol, os animais, as pedras e as plantas. Todas as formas de existência são consideradas gente, mas de outras espécies. A sociedade humana é vista, dessa forma, como uma entre uma multiplicidade de outras, e por isso vemos nessas culturas um imenso respeito por tudo, especialmente pela Terra, da qual nos consideram filhos e parte de um imenso organismo vivo interdependente. A natureza, as sociedades e o seres humanos são, portanto, aspectos correlativos e empáticos do sistema cósmico.

O antropólogo Marshall Sahlins, em seu livro The New Science of the Enchanted Universe, relata que essas culturas entendem que toda espécie possui um espírito governante com os quais os humanos devem dialogar e negociar. No caso da caça e pesca, por exemplo, é necessário antes barganhar com esses espíritos, que, mediante autorização, cedem seus indivíduos. Da mesma forma, o sucesso das plantações depende do apoio das figuras divinas correspondentes. A deusa da natureza é chamada ritualmente para contribuir e os jardins florescerem.

Protagonistas e coadjuvantes

Por Dado Salem
Janeiro 2025



Somos todos protagonistas de nossas próprias histórias. Assumimos o papel central em nossas decisões, sonhos e ações. Cabe a nós conduzir a narrativa da nossa existência com autenticidade e responsabilidade, lidando com os desafios e escolhas que moldam quem somos. No entanto, ao mesmo tempo em que protagonizamos nossas vidas, desempenhamos papéis de coadjuvantes na história dos outros.

Não vou me aprofundar aqui em reflexões sobre a tensão intrapsíquica entre protagonismo e coadjuvância, como a dificuldade em assumir um protagonismo em pessoas com baixa autoestima ou excessivamente dependentes de aprovação externa que podem se sentir incapazes de protagonizar suas vidas, preferindo papéis de suporte ou submissão. E, por outro lado, a resistência à coadjuvância em pessoas com traços narcisistas exacerbados que podem recusar o papel de coadjuvante, enxergando isso como uma ameaça à sua identidade ou valor.