por André Lara Resende
Revista Piauí
Jan 2013
Ter esperança de que as coisas vão melhorar quando estão mal, de que seremos capazes de realizar os desafios que nos impusemos, de que iremos em frente, mesmo sem saber o que significa ir em frente, parece fundamental para nossa saúde física e emocional.
Daniel Kahneman, o psicólogo laureado com o Nobel de
Economia, sustenta que, se nos fosse dada a oportunidade de escolher uma única
característica para nossos filhos, não deveríamos hesitar: que sejam
otimistas. Parece haver uma alta correlação entre o otimismo e a felicidade.
O otimismo é um traço hereditário, tanto quanto a inteligência, a altura e
a cor dos olhos. Que melhor presente para aqueles a quem queremos bem do que
lhes transmitir a propensão para a felicidade?
Por duas vezes, em menos de um ano, ao terminar uma análise
sobre os rumos da economia mundial, recomendaram-me a leitura de The Rational
Optimist. As recomendações partiram de pessoas inteligentes, por quem tenho
apreço. Não que eu esteja particularmente pessimista, mas devo andar soando
muito pessimista. É verdade que tenho fama de pessimista. Nunca me importei com
isso, considero quase um elogio. Refuto com mais indignação a acusação
contrária, de um amigo fraterno, segundo a qual faço uso permanente de um par
de óculos cor-de-rosa que não me deixariam ver a sombria realidade como ela
é. O fato é que um otimista racional parece-me uma contradição em termos, soa
como um oximoro.
Antes de encomendar o livro, procurei saber quem era o
autor. Descubro que Matt Ridley é o quinto visconde de Ridley, tem doutorado
em zoologia pela Universidade de Oxford, e que em 2011 seu livro ganhou o
Prêmio Hayek, conferido à publicação que melhor representa a visão do
mestre austríaco sobre a liberdade econômica. Aprendo ainda que ele era
presidente do conselho de administração do Northern Rock, o banco inglês que
quebrou com grande estardalhaço, imediatamente após a eclosão da crise de
2008. Sorri, e adiei a leitura que só recentemente decidi levar adiante.
Segundo Kahneman, em seu último livro Rápido e Devagar:
Duas Formas de Pensar, a grande maioria das pessoas se acha mais competente do
que realmente é, e percebe o mundo como mais benigno do que ele na realidade
é. Têm assim a impressão de que seus objetivos são mais facilmente
alcançáveis do que de fato são. Além disso, achamos que nossa capacidade de
prever o futuro é muito maior do que é efetivamente possível. O viés
otimista, segundo Kahneman, o mais importante dos vieses cognitivos, está
presente em todos nós. De certa forma, somos todos otimistas, mas alguns
afortunados são mais otimistas do que a média. O otimista é alegre e
animado, estimado por todos, persistente diante das dificuldades e resistente
aos fracassos. Tem probabilidade reduzida de passar por
depressões e o seu sistema imunológico é menos
vulnerável. Toma mais cuidado com a saúde, sente-se mais saudável e vive
efetivamente mais. Além de mais felizes, os otimistas têm um papel
desproporcionalmente importante na configuração do mundo em que vivemos. Suas
iniciativas são determinantes, pois são primordialmente eles os inovadores e
os empreendedores.
Esta é essencialmente a tese do livro de Ridley. Antes de
ser uma defesa do otimismo, é uma defesa da livre-iniciativa, do
livre-comércio, um libelo contra todo tipo de cerceamento das liberdades
individuais. Ele lamenta que hoje tenha se tornado axiomático que o livre
mercado não apenas estimula o egoísmo, mas o exige. Como sustenta, por
exemplo, Michael Sandel em O que o Dinheiro Não Compra: a ideia de que a
comercialização de todos os aspectos da vida é corrosiva do espírito
público e de comunidade tem ganhado cada vez mais força nos últimos tempos.
Em The Rational Optimist, Ridley retoma a tese contrária, a
dos filósofos do Iluminismo inglês, segundo os quais o comércio é indutor
da confiança entre estranhos, fonte de virtude e criador de riqueza. Onde há
comércio, tanto a criatividade como a compaixão florescem. Os governos e a
burocracia é que são inerentemente antiliberais. São constituídos
primordialmente para se apropriarem da riqueza gerada pela iniciativa privada.
Segundo ele, há um padrão que resiste há mais de 6 mil anos: os comerciantes
criam riqueza e os políticos a estatizam. Para Ridley, a abertura comercial
leva à prosperidade e a opção pela autarquia, àpobreza – essa é a lição
da história, tão gritante, que é difícil acreditar que se possa defender o
contrário.
Compreende-se que o livro tenha sido premiado com o Prêmio
Hayek. Ridley parece realmente um liberal progressista, não um conservador sob
o manto do
liberalismo, como é mais comum nos dias de hoje. Sustenta
que os empresários, apesar de proclamarem o contrário, são sempre contra o
mercado competitivo. Em conluio com a burocracia, criam todo tipo de barreiras
à competição, organizam-se em oligopólios, tornam-se ineficientes e sem
criatividade. Ridley é contra as patentes e a propriedade intelectual – o que
é raro. Para ser coerente com o seu liberalismo, deveria se manifestar também
contra as restrições à imigração, à liberdade de ir e vir, de decidir
onde viver, talvez uma das mais básicas das liberdades. Mas seria pedir
demais, concedo.
Não me surpreende que meus amigos tenham gostado do livro
de Ridley. Num mundo cada dia mais esclerosado pela burocracia e soterrado de
impostos, a defesa da livre-iniciativa e a desconfiança, à la Hayek, de todo
tipo de intervenção governamental são compreensíveis. Mas a recomendação
me foi feita não pela defesa da livre-iniciativa – apesar de alguma
desconfiança, não sou visto por eles como antiliberal. Recomendaram-me,
acredito, para que eu ouvisse as razões do otimismo. O argumento de Ridley a
favor do otimismo parece-me, efetivamente, mais interessante do que a sua
defesa da livre-iniciativa. Mais interessante porque menos convencional e
aparentemente menos polêmico. Embora ele pretenda que o seu otimismo seja
indissociável da livre-iniciativa econômica, os fundamentos de seu otimismo
não dependem, como ele quer fazer crer, da aceitação da superioridade do
livre mercado. Ao contrário, têm raízes profundas na mentalidade, tanto à
esquerda quanto à direita, do homem moderno. Trata-se, essencialmente, da
crença no progresso da humanidade. Nem seus argumentos, nem suas evidências
são novos, mas, apresentados de forma ordenada e abrangente para sustentar a
tese do progresso da humanidade, impressionam.
Os avanços dos últimos três séculos foram efetivamente
extraordinários. Desde o Iluminismo, a superstição e a religiosidade
opressiva foram relegadas a um segundo plano. O uso predominante da razão,
como ferramenta de conhecimento do mundo, levou à mentalidade científica, à
revolução industrial e tecnológica. A melhoria da qualidade de vida, desde o
fim do século XVIII, não tem precedentes em toda a história da humanidade.
Depois de resenhar as muitas esferas nas quais o progresso foi sistemático e
contínuo nos últimos séculos, Ridley volta suas baterias contra os
pessimistas, contra todos aqueles que insistem em anunciar que o fim dos bons
tempos está próximo. Recorre a John Stuart Mill para lembrar que, infelizmente,
“não é aquele que tem esperança quando há desespero, mas aquele que se
desespera quando há esperança que é admirado por muitos, como sábio”.
Segundo ele, hoje não faltam profetas do apocalipse, travestidos de sábios.
Os ecologistas, aqueles que sustentam que os limites físicos do planeta estão
próximos, são o alvo principal de suas críticas.
Ridley concede que os pessimistas talvez tenham razão num
ponto: se o mundo continuar como é, terminará em desastre. Ocorre que o mundo
não continuará a ser como é. Essa é a essência da noção de progresso. O
verdadeiro perigo está na redução da velocidade das mudanças. Ridley
sustenta que a humanidade se tornou uma “máquina coletiva de resolver
problemas”. Uma máquina que resolve desafios através da mudança na forma de
ser e agir, uma máquina que funciona através de inovações e invenções.
Segundo Ridley, essas inovações são estimuladas pelo
mercado, pela escassez que eleva os preços e estimula o desenvolvimento de
alternativas e os ganhos de eficiência. O argumento, mais uma vez, não é
original. O progresso tecnológico, a seu tempo, se encarregará de tudo
resolver. Ridley incorre, entretanto, num erro primário, mas infelizmente
frequente. Serve-se da tese do mercado, do sistema de preços como transmissor
de informações, para desqualificar o argumento dos riscos ecológicos. A
grande maioria dos danos ecológicos, como a destruição da fauna, a
poluição do ar, dos rios e dos oceanos, é exemplo de bens públicos, nos
quais não há custo para o indivíduo que deles desfruta, mas há um custo
coletivo. Os bens públicos são o caso clássico da chamada falha de mercado.
Bens cujo custo coletivo do consumo não é passível de ter preços
determinados pelo mercado. Em relação à questão dos limites físicos do
planeta, da destruição do meio ambiente provocada pela ação humana sobre a
Terra, confiar no sistema de preços de mercado – uma máquina efetivamente
extraordinária de resolver problemas, como sustenta Hayek – não faz sentido.
Qualquer aluno do curso básico de microeconomia deveria saber disso.
Em relação à questão ecológica, mais do que qualquer
outra, para que a tese otimista seja defensável, é preciso que ela seja
reformulada, não dependa exclusivamente do mercado e do sistema de preços. Os
estímulos do sistema de preços não são os únicos responsáveis pela
engenhosidade e imaginação humanas. A tese do otimismo só é defensável se
desvinculada da defesa ideológica do mercado mesmo quando o mercado é
reconhecidamente incompetente.
É possível argumentar que o ser humano é um animal
excepcionalmente adaptável, que a partir do momento em que desenvolveu a
capacidade de se comunicar verbalmente, e sobretudo por escrito, houve uma
descontinuidade no seu processo darwiniano de adaptação ao meio ambiente.
Tornou-se o único animal capaz de modificar o seu modo de ser e agir muito
mais rapidamente do que faria através de sua mutação genética. A velocidade
do processo de evolução cultural é muito maior do que a do processo de
evolução biológica. Os “memes”, na terminologia do evolucionista inglês
Richard Dawkins, são ainda mais eficientes do que os genes. Os memes, na
polêmica mas ilustrativa analogia de Dawkins, seriam unidades culturais
equivalentes aos genes, que dariam à evolução das ideias caraterísticas
semelhantes ao processo da evolução biológica. A capacidade de adaptação
do ser humano não pode ser subestimada. Portanto, se e quando ficarem claros
os sinais de que os limites físicos do planeta estão efetivamente próximos,
a imaginação e a engenhosidade humanas saberão se adaptar. A continuidade da
trajetória de progresso ilimitado estaria garantida – essa é a versão
ilustrada da tese otimista. A concepção de uma inventividade humana que
responde exclusivamente a estímulos comerciais, e considera o mercado a
principal fonte de transmissão cultural, sofre de um primarismo ideológico
que desqualifica o argumento do otimismo. Recorro, assim como Ridley recorreu
para questionar o prestígio dos pessimistas, a John Stuart Mill: a ideia de uma sociedade estruturada
apenas pelas relações e sentimentos suscitados pelo interesse pecuniário é
essencialmente repulsiva. Para que o progresso da humanidade não seja interrompido,
para que o ser humano seja capaz de se adaptar, de continuar a fazer avanços
tecnológicos que o impeçam de esbarrar nos limites físicos do planeta, é
preciso que os sinais sejam recebidos e compreendidos. É aqui que entra o
pessimista. O pessimista é quem capta os sinais de perigo e soa o alarme.
Mas retomemos antes a tese otimista. O argumento do
otimismo, quando não tacanhamente reduzido apenas aos estímulos de mercado,
parte da evidência de que a humanidade progrediu e que o progresso se acelerou
de forma acentuada nos últimos três séculos. A partir do século XVIII o
progresso material, o aumento da população e da qualidade de vida, se
acelerou. Esse progresso deve-se à especial capacidade de adaptação do ser
humano, cuja engenhosidade, uma vez livre das amarras da superstição
religiosa e do autoritarismo despótico, permite compreender, controlar e
moldar seu ambiente, como nenhuma outra espécie. Como o conhecimento
científico e o progresso são cumulativos, possivelmente exponenciais, não
há limite para a evolução da humanidade, que apenas deu início à sua fase
científico-tecnológica.
Ocorre que, se houve progresso até aqui, concluir que
continuará a haver sempre progresso não é uma inferência lógica, como
pretendem os otimistas, mas sim uma profissão de fé. Esse é o ponto central
de Cachorros de Palha, o brilhante e perturbador livro de John Gray. Acreditar
no progresso contínuo e ilimitado é uma fé, e, como toda fé, tem raízes religiosas.
O humanismo liberal de hoje tem o mesmo poder de convencer e tranquilizar que
tiveram no passado as religiões reveladas, mas sua crença central no
progresso ilimitado não passa de uma superstição, tão ou mais distante da
verdade sobre o animal humano do que qualquer religião. O progresso
científico é um dado, mas o progresso da humanidade é um mito. O humanismo
não é uma ciência, mas uma religião. Uma religião cujo dogma é o
progresso da humanidade, a fé de que a humanidade pode e criará um mundo
melhor do que o atual. Curioso é que o termo otimismo, cunhado no início do
século XVII, não tinha o sentido atual, de uma visão esperançosa do futuro.
Significava quase o oposto disso: o mundo, criado por um Deus todo benevolente,
era ótimo, o melhor dos mundos possíveis, e, portanto, não poderia ser
melhorado. É esse otimismo no seu sentido original que foi criticado por
Voltaire, com bom humor, em Cândido, e por Schopenhauer, com mau humor, em O
Mundo como Vontade e Representação, ao argumentar que o absurdo do otimismo
salta aos olhos e o seu oposto – que vivemos no pior dos mundos possíveis – é
mais defensável.
O que se entende hoje por otimismo é algo bem distinto: a
esperança num futuro melhor. O otimista, no sentido contemporâneo, deveria
ser mais corretamente chamado de esperançoso. As origens religiosas do
otimismo na sua versão original são bem conhecidas, mas as raízes religiosas
do otimismo moderno, do humanismo secular, são menos reconhecidas. Os positivistas
franceses, Henri de Saint-Simon e Auguste Comte, criaram a Religião da
Humanidade, uma visão do progresso da civilização baseada na ciência.
A conotação religiosa da noção de progresso fica mais
evidente quando se compreende que o otimismo humanista é a esperança de que a
vida seja melhor no futuro. Essa é uma noção essencialmente cristã. Até o
cristianismo, a história era entendida como cíclica, sem propósito nem
direção. O cristianismo é que introduziu a noção de uma trajetória, de
queda e redenção. O otimismo humanista adaptou a doutrina da salvação
cristã, transformando-a num projeto de emancipação da humanidade. Como
sustenta John Gray, a ideia de progresso é uma versão laica da crença
cristã na Providência Divina.
O conhecimento é efetivamente cumulativo, possivelmente
até mesmo exponencial, mas a vida humana não é uma atividade cumulativa.
Não há garantia de que aquilo que avançou numa geração não vá ser
integralmente perdido na próxima. Quem tiver dúvida não deve deixar de ler
Stefan Zweig em O Mundo de Ontem. Intelectual sofisticado, judeu austríaco,
nascido em 1881, Zweig conheceu o apogeu da Europa antes de 1914, um mundo
interligado e civilizado, do qual Viena, sua cidade natal, era a expressão
máxima. Um mundo que começou a ruir com a eclosão da Primeira Guerra
Mundial, desintegrou-se no período que se seguiu, até desembocar na Segunda
Guerra Mundial. No início dos anos 40, Zweig exilou-se no Brasil. Ainda
encontrou forças para escrever Brasil, País do Futuro, um elogio otimista ao
país que escolheu para se refugiar, mas não resistiu ao desmoronamento de seu
universo: em 1942, em Petrópolis, suicidou-se com sua mulher. Nada substitui a
leitura do belo livro de Zweig, mas o tom de seu libelo contra o otimismo do
século XIX pode ser avaliado por algumas frases: “O pior é que foi justamente
o sentimento que mais valorizávamos – nosso otimismo compartilhado – que nos
traiu. Nosso idealismo, nosso otimismo baseado no progresso, nos levou a mal
avaliar e a subestimar o perigo. O século XIX operava sob a ilusão de que
todos os conflitos poderiam ser resolvidos pela racionalidade. Mal sabíamos,
no nosso comovente liberalismo otimista, que cada novo dia que vem raiar em
nossa janela pode esmagar nossa vida.”
Para refrescar a memória da barbárie do século passado,
como contraponto às evidências do livro de Ridley, recomendo a leitura dos
primeiros capítulos de Pós-Guerra: Uma História da Europa desde 1945, do
historiador inglês Tony Judt. Seu livro começa com o fim da Segunda Guerra
Mundial, período posterior à morte de Zweig, uma época que nos acostumamos a
considerar como a mais próspera de todos os tempos. Como afirma Gray, o que
faz o século XX especial não é o fato de que ele tenha sido repleto de
genocídios muito além dos campos de batalha, mas sim a escala dos
assassinatos em massa. Sobretudo o fato de que foram premeditados e perpetrados
em nome de projetos ambiciosos de melhora da humanidade. As evidências
raramente são conclusivas, pois primeiro tomamos partido, depois as
interpretamos. Pode ter havido avanços no século passado, mas não faltaram
barbárie e sofrimento infringidos em nome do progresso.
A noção de progresso se apoia na crença de que o aumento
do conhecimento e o avanço da espécie, ao menos no longo prazo, andam juntos,
mas não há razão para acreditar que assim seja, apenas esperança. O mito de
Prometeu, acorrentado por ter se apoderado do fogo dos deuses, assim como o de
Adão e Eva, condenados pela tentação irrefreável, contêm uma verdade que
nos é profundamente desconfortável: o conhecimento não nos libera de nossa
condição de ser apenas mais um animal sobre a Terra. É por isso que Gray
afirma que nos últimos dois séculos a filosofia se voltou contra a fé, mas
não se livrou do principal equívoco do cristianismo: a crença de que os
homens sejam radicalmente diferentes dos outros animais.
Abrimos mão da ilusão da individualidade preservada após
a morte, da esperança religiosa na vida eterna, baseada na fé, mas
insustentável diante do avanço da razão, e as substituímos pela ilusão do
avanço eterno da humanidade. Ainda que assim fosse, que a humanidade
efetivamente progredisse, seja lá o que se entenda por progresso da
humanidade, que nos importa, a nós individualmente, condenados a envelhecer e
a morrer? Por que motivo o progresso da humanidade deveria nos reconfortar de
uma vida de sofrimentos, doença e morte? Por que deveríamos estar dispostos a
nos oferecer em sacrifício no altar do progresso desse ser abstrato que
denominamos “a humanidade”? Poder-se-ia argumentar que a compaixão, a
capacidade de sentir com o outro, que faz de nós um animal social, que nos
une, não apenas àqueles que conhecemos e que nos são próximos, mas até
mesmo aos desconhecidos, a todos com quem compartilhamos a Terra, seria o
amálgama de nossa identificação com a humanidade. Mas são coisas muito
distintas. Uma coisa é a compaixão pelos nossos contemporâneos, mesmo em
relação a suas condições de vida depois de nossa morte. Também a
compaixão pelos que nos antecederam, cuja história conhecemos, faz sentido.
Mas, se aceitamos a morte como definitiva, é difícil sustentar que o eventual
progresso de uma entidade abstrata, com a qual nada
compartilharemos, possa ser invocado para minorar nossa
dor.
Precisamos desesperadamente encontrar um sentido para a
existência. Despidos da religiosidade tradicional, já não podemos mais crer
na sacralidade da vida. Passamos então a crer no progresso da humanidade.
Infelizmente, trocamos uma bela e reconfortante ilusão por um mito arrogante.
É essa arrogância que aparece no desprezo pelo planeta, que subordina toda
biodiversidade ao nosso instinto predador, que nos faz acreditar sermos capazes
de controlar nosso mundo e nosso destino.
Talvez não possamos prescindir de algumas ilusões. A
esperança é com certeza uma delas. Talvez por isso o otimismo nos faça bem.
Ter esperança de que as coisas vão melhorar quando estão mal, de que seremos
capazes de realizar os desafios que nos impusemos, de que iremos em frente,
mesmo sem saber o que significa ir em frente, parece fundamental para nossa
saúde física e emocional. Mas é preciso ter esperança sem procurar razões
para ter esperança. Aceitar a contradição entre nosso impulso vital, que é
a esperança, e a razão, que é o instrumento de que dispomos para nos guiar
num mundo perigoso. Um mundo implacável, do qual temos dificuldade de extrair
um sentido. A razão deveria nos fazer cautelosos, sóbrios e humildes. A
razão toma nota, faz o mapa de nosso entorno, soa o alarme, alerta para os
riscos. Por isso é essencialmente pessimista, sempre atenta para o que pode
dar errado, para os riscos do desconhecido. A esperança é humilde e
essencialmente irracional. Há uma insuperável contradição entre a
racionalidade e o otimismo. Uma contradição vital, da qual dependemos e não
podemos prescindir. Quando pretendemos superar essa contradição, explicar o otimismo pela razão, traímos a razão. Quando a esperança
se torna arrogante, traímos a esperança.
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