Sobre o triunfo de Trump e o ponto cego que o criou

por Otto Scharmer Co-fundador u.lab, Professor Sênior do MIT
Novembro 2016
Traduzido por Dado Salem




Entramos num momento decisivo não só na América, mas também globalmente. É um momento que poderia nos ajudar a despertar para um nível mais profundo de consciência coletiva e renovação - ou um momento em que poderíamos cair numa espiral rumo ao caos, à violência e condições semelhantes ao fascismo. Se é um ou outro depende de nossa capacidade de tomar consciência de nosso ponto cego coletivo.

A eleição de Donald Trump como o 45o presidente dos Estados Unidos emitiu ondas de choque através do planeta. Numa repetição do Brexit, uma coalizão de brancos, homens e mulheres de classe trabalhadora (e de classe média) de áreas principalmente rurais elegeu um candidato anti-establishment para o cargo de presidente. Mas a eleição de Trump não é um dado marginal: basta olhar para a ascensão global de homens fortes como Vladimir Putin, Recep Erdogan, Viktor Orban e Rodrigo Duterte e a onda de outros populistas de direita.

Por que o país mais rico e próspero do mundo elegeu um candidato que nega as mudanças climáticas, que usou linguagem racista, sexista, misógina e xenófoba durante toda sua campanha? O que nos faz colocar alguém como ele na Casa Branca? Por que criamos uma eleição presidencial entre dois dos candidatos mais detestados de todos os tempos, Donald Trump e Hillary Clinton? Por que Trump, que mentiu e atacou minorias, jornalistas, mulheres e deficientes, só se tornou mais forte ao longo da sua campanha? Qual é o ponto cego que nos impediu de ver e mudar as forças mais profundas em jogo? Por que, repetidas vezes, criamos coletivamente resultados que a maioria das pessoas não quer?

O ponto cego

Trump e Clinton, do ponto dos Millenials (jovens entre 15 e 30 anos) , representam tudo o que está errado com a América. Trump encarna tudo o que está errado com nossa cultura. Clinton encarna tudo o que está errado com nossa política. E ambos incorporam tudo o que está errado com a nossa economia.

Nosso ponto cego coletivo reflete paradigmas de pensamento que legitimam três grandes divisões: a divisão econômica, a divisão política e a divisão cultural-espiritual. Eu já falei sobre essas divisões antes, mas agora parecem mais severas do que nunca.

A divisão econômica

Há uma linha lógica dos votos em Trump e no Brexit lá atrás na crise econômica de 2008 e de lá à desregulamentação dos anos de Clinton e de Reagan nas décadas de 1990 e de 1980. A participação dos trabalhadores norte-americanos na renda nacional vem diminuindo desde o final da década de 1990, com os ganhos indo para o 1% mais rico. O crescimento médio anual da renda nos Estados Unidos tem sido negativo para 90% da população nas últimas duas décadas.

Os Millennials têm bons sensores para este tipo de desconexão. Na campanha de 2016, Bernie Sanders ganhou muito mais votos entre os menores de 30 anos do que Clinton e Trump juntos. Em uma recente pesquisa da Universidade de Harvard que pesquisou jovens adultos entre as idades 18 e 29, 51 por cento dos entrevistados disseram que não apoiam o capitalismo. Apenas 42% disseram que o apoiam. Igualmente interessante é que apenas 33% disseram apoiar o socialismo.

O que essas respostas sugerem é que a maioria dos jovens pode estar procurando uma maneira diferente de administrar a nossa economia. Eles não querem o falido sistema do socialismo soviético, nem o falido capitalismo especulativo. Muitos jovens desejam reorientar a economia para a justiça, a igualdade e as fontes mais profundas de sentido na vida - o que eu chamo de gerar bem-estar para todos.

Este ceticismo dos jovens em relação ao sistema econômico atual não é surpreendente se você considerar o quadro econômico mais amplo: os Estados Unidos é o país mais desigual de todos os países da OCDE de alta renda, tem a maior taxa de pobreza de qualquer economia avançada (17% ), A maior taxa de obesidade (36%), a maior taxa de encarceramento e uma dívida estudantil de US$ 1,2 trilhão.

A mobilidade social - a capacidade de trabalhar no seu caminho e realizar seus sonhos - é mais fraca na América hoje do que na Europa. Como dizem: se você quiser realizar o sonho americano, vá para a Dinamarca. Esses fatores econômicos estruturais e forças de exclusão são os verdadeiros impulsionadores que elevaram Trump à presidência. No entanto, em vez de abordar essas questões estruturais, a campanha de Clinton optou por concentrar a conversa quase inteiramente em falhas pessoais de Trump.

Por que tantas pessoas desconsideram essas questões estruturais? É a ideologia econômica neoliberal que Ronald Reagan e sua equipe trouxeram à Casa Branca, que permaneceram durante os anos de Clinton, que continuaram a florescer durante os anos de Bush e que, apesar de 2008, continuaram a moldar a política da Casa Branca mesmo depois que Barack Obama assumiu o cargo. O paradigma econômico neoliberal continua a moldar o consenso econômico de Washington. Nossa incapacidade de substituir esse paradigma fracassado da economia do "egosistema" por uma estrutura mais holística e inclusiva da economia do "ecossistema" criou um vazio intelectual e moral que permitiu que Donald Trump se conectasse com o "homem comum esquecido". Nos leva à segunda divisão.

A divisão política

O sistema político é manipulado. Donald Trump também está certo sobre isto, mas por razões diferentes do que ele pensa. Hillary Clinton é a face do sistema atual. Sim, ela tem mais experiência e estava melhor preparada para o trabalho do que qualquer outro candidato. Mas como Donald Trump lembrou, ela teve a "experiência errada" (tradução: ela encarna o status quo). Como muitas pesquisas realizadas no ano passado indicaram, Bernie Sanders teria ganho facilmente contra Trump, mesmo que suas soluções, na melhor das hipóteses, ainda estivessem sendo criadas. Mas o que fez a liderança do Partido Democrático em vez disso? Manipulou o processo primário para que Bernie perdesse e Hillary ganhou. Se o Partido Democrata fosse democrático em seus processos, o nome do nosso novo presidente eleito seria Bernie Sanders.

No entanto, a verdadeira divisão política do nosso tempo não é entre democratas e republicanos. É entre os insiders do sistema de Washington que é dirigido por lobbies e tomadas de decisão dirigidas por interesses por um lado, e as comunidades esquecidas sem uma voz no outro. Funcionários eleitos em Washington, independentemente de sua filiação partidária, gastam cerca de 50% de seu tempo de angariando fundos e quase não têm tempo para conversar com os atores reais menos poderosos que são afetados pela formulação de políticas. Esse é o problema estrutural que enfrentamos: muitos grupos são excluídos e não têm voz no processo de governança e tomada de decisões. Assim, a segunda força que colocou Donald Trump na Casa Branca é a enorme desconexão entre as comunidades sem voz e o sistema de tomada de decisão política de Washington.

A Divisão Espiritual

A maior divisão, no entanto, não é nem econômica nem política. É uma divisão cultural-espiritual que está dilascerando nossas comunidades, nosso país, nossa cultura e o mundo.

As divisões econômicas e políticas resultam de falhas institucionais massivas. À medida que a taxa de falhas institucionais e sistêmicas aumenta, vemos cidadãos e líderes responderem de uma das três maneiras a seguir:

1. Deixar como está para ver como fica: seguindo o mesmo velho estilo.

2. Andando para trás: vamos construir uma muro entre nós e eles.

3. Avançar: inclinar-se para o que quer emergir - e construir arquiteturas de colaboração ao invés de arquiteturas de separação.

Qual foi o problema nessa eleição? Hillary era o "deixar como está"; Trump era o construtor de muros. Mas não havia ninguém na terceira categoria.

Foi interessante ver todo o establishment de mídia americano tentando derrubar Donald Trump (depois de criá-lo) - apenas para perceber que todos os ataques só o tornavam mais forte. A única voz eficaz contra ele foi de Michelle Obama. Ela era a única que podia sufocá-lo. E ela o fez, até que a campanha de Trump decidiu parar de atacá-la. O que fez a primeira-dama, que tem altos índices de aprovação entre democratas e republicanos, muito mais eficaz em lidar com o fenômeno Trump?

Quando você assiste seus discursos em New Hampshire e Phoenix você vê a resposta: ela respondeu a ele não com ódio e medo. Em vez disso, ela falou com empatia, reflexão honesta e compaixão. Ela corajosamente expôs sua própria vulnerabilidade aparecendo como um ser humano. Michelle Obama também não se concentra principalmente no "oponente", mas sim em sua própria experiência, seu próprio processo de abertura e no futuro positivo que ela sente que está querendo emergir. É o que é preciso para ser um guerreiro da terceira categoria, um guerreiro do coração aberto: à medida que você se envolve no momento atual, seu olho está no futuro que está buscando emergir - não no passado que você tenta lutar.

Alguém que se encaixa nessa terceira categoria combinaria a compaixão e a presença de uma Michelle Obama com o foco de mudança de paradigmas de uma Elizabeth Warren. Tal pessoa precisaria se conectar a um poderoso movimento global de mudadores que colaboram em torno de novas formas de renovação econômica, política e cultural.

Então, o que é que está dilascerando nossas comunidades? É que o ciclo de absentismo mantém o preconceito, o ódio e o medo amplificados porque é superalimentado pelos negócios (através de uma indústria de mídia bilionária) e pela tecnologia (Facebook e Google nos mantendo bem dentro das câmaras de eco da nossa bolha de filtro). Além disso, quase um quinto dos tweets relacionados a eleições veio de robôs, de acordo com um novo estudo feito por pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia. Nossas mídias sociais são projetadas para disseminar e amplificar sistematicamente a negatividade, não é projetada para construir uma comunidade e um diálogo construtivo e transfronteiriço.

O que fazer agora

O presidente Trump agirá como o candidato Trump? Ou ele vai evoluir e crescer com as exigências do trabalho? Nós não sabemos. Provavelmente sua maior contribuição será que ele nos ajude a reconhecer a outra parte (negativa) de nossa cultura que precisa de atenção, compaixão e transformação. Como dizia o poeta alemão Goethe com tanta eloquência ao fazer Mefistófeles - a personificação do mal - dizer: "Sou parte daquela força que eternamente deseja o mal e faz eternamente o bem".

Qual é o "bem" que o Presidente Trump poderia trabalhar para nós? Aqui está uma pequena lista:

Deixar de lado qualquer ilusão de que as mudanças necessárias de nosso tempo se originarão da Casa Branca ou de qualquer outra estrutura de cima para baixo. Virá, em vez disso, de um novo movimento global de criadores de mudanças locais e multi-locais que aplicam a mentalidade de Michelle Obama (mente aberta, coração, vontade) à transformação do coletivo.

À medida que começamos a reagir à ruptura desta semana, temos a oportunidade de nos organizarmos de novas maneiras que vão além das respostas habituais ao rompimento:

1. Raiva: levando para algo fora de nós,

2. Mudança: usar essa energia para transformar-se, ou

3. Movimentos que reagem contra os sintomas das divisões sociais e ecológicas.


Somos chamados hoje para uma resposta focando na transformação do coletivo. O que mais falta é uma infra-estrutura habilitadora que suporte iniciativas para co-criarmos essa mudança.

A boa notícia é que o futuro já está aqui - já existem muitas iniciativas nas quais grupos transetoriais trabalham a partir de uma consciência de todo (visão de ecossistema) e não de uma perspectiva de silo (visão do ego-sistema).

Resumindo, o ponto cego em questão aqui diz respeito aos paradigmas dominantes do pensamento que legitimaram as divisões econômicas, políticas e espirituais que - em conjunto com o uso estúpido das mídias sociais e da tecnologia - deram origem à presidência de Trump. Superar essas divisões, nada mais é que regenerar os fundamentos de nossa civilização, atualizando os principais códigos operacionais em que operam nossas sociedades:

Economia 4.0: da economia do ego-sistema à economia do eco-sistema, a fim de reorientar a atividade econômica (e o uso do dinheiro) na geração de bem-estar para todos

Democracia 4.0: engajar as pessoas de maneiras mais diretas, distribuídas, democráticas e dialógicas e que proíbam a influência tóxica da corrupção do dinheiro

Educação 4.0: instituições livres de educação que ativam a profunda capacidade humana de co-criar o futuro.

Para promover essa agenda profunda de renovação social será necessária:

· Novas plataformas colaborativas, on-line e off-line, que permitem que os pioneiros e transformadores de diferentes setores se envolvam diretamente entre si.

· Uma constituição para o espaço digital global que torna os Facebooks e Googles responsáveis perante cidadãos e comunidades em todo o mundo.

· Mecanismos massivos de capacitação que reforcem as capacidades de inovação em escala (curiosidade, compaixão, coragem)

· Novos conceitos como subsídios básicos de renda para tudo o que substituiria o estado atual de irresponsabilidade organizada através de uma ecologia de empreendedorismo que é impulsionada pelo propósito ao invés do lucro - em outras palavras, permitir que as pessoas se libertem do trabalho empobrecedor que não ative seus maiores dons, e em vez disso realizar o trabalho que elas são verdadeiramente apaixonadas.

MITx u.lab é um pequeno protótipo e plataforma que começamos no ano passado com a intenção de ajudar os fabricantes de mudanças. O que começou como um MOOC é agora uma plataforma para 75.000 fabricantes de mudança de 180 países que colaboram em 600 hubs. Em 2017 nós pretendemos mover esta plataforma para sua próxima fase de catalisar a mudança na escala de todo o sistema.

É uma das várias iniciativas que nos ajudam a lembrar o que mais importa: que, como guerreiros da terceira categoria, precisamos envolver plenamente o momento presente, mantendo os olhos no futuro que está buscando emergir. Nossas velhas formas civilizacionais são muito mais frágeis do que alguém poderia ter pensado. Mas nossa capacidade de regenerá-las da fonte mais profunda de nossa humanidade também está mais presente e disponível do que nunca - agora.


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