Pandemia provoca revolução doméstica e cria hábitos que vieram para ficar

por Carolina Giovanelli
O Globo
Agosto 2021



Lá para o final de março do ano passado, boa parte do Brasil se viu recluso em casa por causa de um vírus recém-chegado ao país. Para quem estava acostumado a uma vida agitada, com deslocamentos rotineiros, a quebra de rotina — carregada pelo medo da pandemia — causou um choque. Aqueles que puderam se beneficiar do isolamento enfrentaram questões que partiram do tédio (já arrumei todos os meus armários, e agora?), passando pela solidão (tenho saudades dos meus amigos, e agora?) até chegar às dúvidas existenciais (acho que estou com depressão, e agora?). Depois de muitos divórcios, videochamadas, novos hobbies, sessões de terapia e uma crise sanitária que dura muito mais do que o esperado, as coisas foram se assentando. O que era compulsório ganhou tons voluntários. Parte da turma que torcia o nariz para um modo de vida mais caseiro acabou se acostumando: redescobriu o valor do lar e pretende seguir na toada doméstica.

A casa virou um palco onde os conflitos aparecem com mais frequência, pois não foi possível adiar as soluções de algumas questões internas, analisa o terapeuta Arnaldo Cheixas.

No começo fiquei meio doida, o dia todo em casa, lidar com a família, mas agora estou mais tranquila — diz a artista visual Gabrieli Gama.

Ela deixou a criatividade aflorar. Começou a fazer cliques de si mesma para treinar a fotografia, a praticar exercícios aeróbicos com vídeos no YouTube e a assar pães, este um clássico pandêmico. “Fico uns 15 minutos sovando a massa, desestressando.”

Passar a preparar a própria comida foi um dos hábitos adquiridos nesse período de transformações drásticas que vieram para ficar. O bibliotecário carioca João Marco Luz, de 29 anos, se considera um “crítico” de feijão, mas dos outros, porque nunca havia tido coragem de usar a panela de pressão para preparar o prato. Com o contrato de trabalho suspenso, João, que sabia “no máximo fazer um macarrão”, aproveitou o tempo livre para se aventurar na cozinha. O feijão saiu saboroso. Depois, o rapaz se arriscou na picanha na cerveja, no peixe de forno... — Achei maneiras de ocupar meu tempo, e isso fez bem para minha saúde. Assistir a séries e jogar videogame acaba enjoando, então busquei algo que me desafiasse — conta. Assim, surgiu também o interesse por aprender a tocar violão, encostado desde 2018.

— No começo da quarentena foi difícil, sempre tive muitos amigos. Mas me conheci melhor e aprendi a apreciar minha companhia. Coloco uma música, pego uma cerveja e aproveito.

Homens, mulheres, jovens e velhos passaram, enfim, a ter mais tempo para a olhar para si mesmos nos mais variados aspectos da vida, provocando grande e rápido impacto na saúde mental e física.

— Percebemos que tínhamos arestas para aparar internamente, tanto no ambiente físico da casa, do trabalho, quanto nas condições psicológicas, morais e espirituais. Pessoas ficaram com medo de estar consigo mesmas, de olhar para dentro e não encontrar nada. Mergulharam, por exemplo, em uma vida virtual para fugir — afirma a filósofa Lúcia Helena Galvão, que complementa: — Já outros aproveitaram para repensar seus propósitos e imprimiram melhorias. Pararam para observar os detalhes, ouvir a música de que mais gostavam, se reconectaram com as mais belas leituras. Assim, desenvolveram capacidades que não vão perder depois e pavimentaram o caminho para uma vida equilibrada e feliz.


Casa multifuncional

Uma das grandes mudanças foi em relação à atividade física. A maioria dos brasileiros ganhou peso, sim, no período (estima-se que ao menos 20% da população tenha engordado mais de 3 quilos), mas outros muitos passaram a se mexer em espaços diminutos da casa, como no canto da sala ou do quarto. Desprovidas dos equipamentos grandiosos das academias, essas pessoas lidam agora com pesos e cordas improvisados e, não raro, com o apoio de móveis. Um esforço, que, segundo os especialistas, leva ao autoconhecimento dos limites do próprio corpo e da força de vontade. Criou-se um novo tipo de interação com o espaço físico, que impactou também as relações.

Além das adaptações para os exercícios e para o home office, os lares passaram por uma revolução na decoração. O setor de construção civil e móveis e decoração deu um salto em 2020, no meio de uma crise aguda do varejo.

Muita gente percebeu que morava mal, no sentido de não iluminar bem os ambientes ou de faltar personalidade à própria casa, e investiu em mudanças voltadas para o bem-estar pessoal.

— O profissional que projeta hoje “sala, cozinha e quarto” está desenhando o passado. É preciso levar em conta as atividades, como trabalhar, comer, receber amigos, e dar à casa a flexibilidade necessária, com móveis que deslizam e cortinas, por exemplo — afirma o arquiteto Guto Requena.

Houve quem tenha se mudado para respirar novos ares, rumo ao interior, ao litoral ou a espaços cercados por natureza. As plantas, inclusive, nunca dominaram tanto os lares. A terapeuta energética mineira Nádia Schmidt, 28, foi morar sozinha em um apartamento com varanda e criou um canto bastante pessoal, com flores, tapetes, almofadas coloridas e fotos da infância. Ela passou a se interessar por vinhos, realizou cursos, voltou a pintar quadros e até adotou um gato para lhe fazer companhia, o Carlos Daniel.

— Estou começando a circular um pouco, mas criei um apego mais forte com minha casa. Agora, selecionarei bem o que eu quero fazer, se realmente vale sair. Não tem mais essa história de ir a algum lugar só para falar que foi.


Medo na volta

A consciência do valor de nosso lar se consolidou. Porém, para alguns foi além e agora pode trazer problemas. Trata-se de quem escolhe ficar no ambiente doméstico por medo do mundo lá fora, após restrições tão duradouras.

O horizonte da volta à total “normalidade”, com barzinhos, festas e jantares sem restrições, traz angústia e ansiedade a alguns. Isso porque o desejo de regressar ao convívio se estendeu por tanto tempo que pode ter esmorecido. Os temores ganharam até nome em inglês, o F.O.M.A. (Fear of Meeting Again, algo como “medo de voltar a encontrar”). Mas não há dúvida de que muitos e muitos sairão dessa experiência única da humanidade fortalecidos.




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