A corrupção no divã
por Marion Minerbo
Revista Psique
Fevereiro 2015
A corrupção sempre foi endêmica entre nós, mas nos últimos anos ela foi oficialmente institucionalizada. Corromper, diferentemente de subornar, significa quebrar em pedaços, desnaturar, tornar podre. O que apodrece? No limite, as próprias instituições democráticas. Pois, uma vez institucionalizada, a corrupção torna natural um modo de vida no qual os valores ligados à democracia são desqualificados, e se tornam marginais ao sistema.
Para a Psicanálise, a corrupção pode ser entendida como um fenômeno, que se produz no entrecruzamento de três espaços psíquicos distintos: a) individual, marcado por um funcionamento mental paranoico; b) intersubjetivo, no qual a pessoa que tem poder “enlouquece”, com a ajuda das pessoas com quem convive e c) institucional, em que a corrupção foi transformada em uma instituição. A participação de cada um desses três espaços psíquicos pode se dar em “proporções” diferentes, originando “corrupções” distintas. Respectivamente: a) como sintoma de uma estrutura patológica, b) como efeito de um “enlouquecimento” mais ou menos transitório e c) como modo de vida. A corrupção descarada e deslavada é efeito da potencialização recíproca desses três espaços psíquicos.
Começo abordando o funcionamento paranoico, ligado ao espaço psíquico individual. O termo “indivíduo” aqui se refere tanto a uma pessoa, quanto a um grupo, por exemplo, um partido político.
Psiquicamente, o paranoico não é capaz de conceber, nem de processar, situações complexas. Ele, simplesmente, não tem esse “chip”. Por isso, as situações são simplificadas e reduzidas a um esquema binário, no qual o bem e o mal são vividos como absolutos. Sua visão de mundo é sempre “nós, os bons, contra eles, os maus”. O paranoico se percebe como perfeito, melhor do que os outros: é justo, correto e bom, enquanto os outros são injustos, estão errados e são do mal. Candidamente, ele se põe no centro do mundo: só existe uma opinião, a dele. Por isso, tem a expectativa sincera de que o outro reconheça sua superioridade e se submeta a ele, renunciando a suas próprias necessidades e desejos. Espera amor incondicional. É autoritário, tem ideias de grandeza, certezas absolutas e não admite críticas. Se alguém tem uma opinião diferente, é visto como desleal e traidor. Ou, então, é visto como incapaz e fraco, digno de desprezo. O paranoico também não tem o “chip” que lhe permitiria empatizar com o sofrimento do outro; não o vê como um “semelhante”, que tem as mesmas necessidades e os mesmos direitos.
O paranoico luta fanaticamente para defender sua causa. Se for preciso transgredir a lei para atingir seus objetivos, fará isso como um herói que se sacrifica por um bem maior
Para o paranoico, seus objetivos, que são sempre bons, justos e nobres, justificam os meios. Ele fará qualquer coisa para alcançar seus objetivos. Se é acusado de alguma coisa, se ofende, porque a acusação é vivida como injusta. Sente-se, cronicamente, lesado em seus direitos. Por isso, é ressentido e rancoroso. Estrutura-se em torno do ódio ao outro, sempre visto como inimigo e como ameaça a seus projetos pessoais. Nessas condições, o paranoico pode se tornar violento e as pessoas sentem medo dele. Para Elias Canetti, o paranoico, como o ditador, sofre de uma doença do poder. Esta se caracteriza por uma vontade patológica de sobrevivência exclusiva e por uma disposição, ou mesmo um impulso, para sacrificar o resto do mundo em nome da sobrevivência.
O segundo espaço psíquico, que contribui para o fenômeno da corrupção, é o intersubjetivo. Para a Psicanálise, ninguém enlouquece sozinho, mas no espaço psíquico constituído pela relação com outros sujeitos. O poderoso pode enlouquecer num vínculo com pessoas que, sistematicamente, assumem uma posição reverente, intimidada, subserviente, de devoção fascinada e apaixonada. Por todas as características já descritas, o paranoico está bem talhado para produzir, exatamente, este tipo de reação nas pessoas que o cercam. Aliás, é a mesma atitude acrítica que a criança pequena tem em relação aos pais, que são vividos como aqueles que “podem tudo”. O poderoso enlouquece quando se identifica com isso, isto é, quando “acredita”, na mensagem que lhe é transmitida, inconscientemente, pelo lado mais infantil das pessoas com quem convive: que ele é superior aos outros e, por isso, tem o direito e o dever de gozar mais do que todos. Desta perspectiva, a corrupção pode ser entendida como sintoma de certo tipo de enlouquecimento – não no sentido de doença mental, mas no de hybris, palavra que, em grego, significa excesso ou desmesura. A hybris pode acometer a pessoa que tem poder político, financeiro e/ou simbólico. Sua loucura consiste em tentar se igualar aos deuses – que não precisam temer nada, porque estão acima do bem e do mal. Quanto mais ficamos fascinados numa posição de submissão apaixonada, menos nos atrevemos a lhe mostrar que a lei vale para todos, e mais contribuímos para enlouquecer quem tem poder.
A corrupção é o processo por meio do qual o pacto perverso, que seduz o sujeito autorizando-o a gozar mais do que todos, vai sendo instituído
O terceiro espaço psíquico, que contribui para o fenômeno da corrupção, é o institucional. Para a Psicanálise, os sistemas simbólicos instituídos, em certa época e lugar, formam o pano de fundo de nossa vida psíquica. Isso quer dizer que instituem ideias e valores que determinam nossa maneira de sentir, pensar e agir. Ora, a corrupção pode deixar de ser uma prática ocasional para se tornar uma instituição. Esse processo tem duas fases: a desnaturação das instituições democráticas e a instituição da corrupção.
A primeira acontece quando alguém que ocupa, formalmente, o cargo de representante de uma instituição, se “demite psiquicamente” de seu lugar simbólico. Ele deixa de sustentar, por meio de seus atos cotidianos, os valores instituídos. Em vez disso, coloca interesses pessoais acima dos interesses da instituição. O efeito dessa “demissão” é a corrupção e a desnaturação da própria ordem simbólica, que funda e sustenta aquela instituição.
O paranoico produz no outro um temor respeitoso. Ninguém ousa contradizê-lo, com medo de sua fúria
Um exemplo. Quando um juiz se deixa subornar, ou, simplesmente, intimidar, – e vimos, acima, como o paranoico pode se tornar violento a ponto de, realmente, causar medo – ele está se “demitindo” de seu lugar simbólico. O que acontece é que o vínculo, até então naturalizado, entre a palavra “juiz” e o significado “justiça”, vai se enfraquecendo, até que, no limite, se dissolve e se desnatura. Segue-se um efeito em dominó. Todas as palavras ligadas a este sistema simbólico perdem o lastro que a instituição viva e o símbolo forte garantiam. Em lugar de inspirar afetos do tipo temor respeitoso, a toga e a beca nos parecem roupas engraçadas; as palavras “réu”, “culpa”, “transgressão”, “punição”, “lei”, “justiça” continuam existindo no vocabulário, mas estão vazias de significado emocional, já não acreditamos nelas. A instituição se torna disfuncional; ideias e valores, que justificavam sua existência, entram em crise. Instala-se uma condição de miséria simbólica, que deixa as pessoas sem rumo. O suborno do juiz corrompe a instituição justiça.
Processo cultural
Paralelamente, a corrupção se institucionaliza. Torna-se uma cultura que tende a se reproduzir de forma autônoma. O pacto social democrático está baseado em um “contrato”, mediante o qual cada um de nós aceita renunciar às aspirações infantis de realizar todos os nossos desejos de forma absoluta, para, em troca, fazer parte da comunidade humana. Aceitamos que a lei vale para todos, porque todos precisamos da proteção da lei. A renúncia ao absoluto e a submissão à lei, contudo, são feitas a contragosto e nunca de forma definitiva. Gastamos bastante energia psíquica para fazer a gestão desses desejos e mantê-los sob certo controle civilizado. Por isso, essas fantasias regressivas de plenitude e onipotência, que estão latentes em todos nós, podem ser “acordadas” a qualquer momento. Basta que “alguém” acene com essa possibilidade. Aí, é a fome com a vontade de comer.
O desvio de recursos é criminoso, e certamente prejudica o país, mas a institucionalização da desqualificação da lei coloca em risco a democracia
Esse “alguém” é a corrupção como instituição. Ela seduz o sujeito propondo-lhe um pacto perverso no lugar do pacto social. Ele é convidado a desqualificar a lei e a renúncia, em troca da possibilidade de realizar o desejo imorredouro de transcender os limites inerentes à condição humana. A desqualificação da lei se torna um valor e origina um modo de vida. Não é difícil perceber que o pacto perverso não tem condições de garantir a vida em sociedade.
A institucionalização da corrupção é gravíssima porque institui como um valor a desqualificação da lei – aquela que coloca limites à desmesura de nossos desejos, base do pacto social democrático. O pacto perverso seduz e agencia o sujeito acenando-lhe com a possibilidade, vetada pela lei, de gozar mais do que todos. A corrupção, como instituição, faz do pacto com o diabo um valor e um modo de vida.
Assim, de um ponto de vista psicanalítico, podemos definir a corrupção como o processo por meio do qual a desqualificação da lei – aquela que coloca limites aos nossos desejos individuais megalomaníacos, e que, por isso mesmo, é base do pacto social democrático – vai sendo institucionalizada. O processo se completa quando a corrupção se torna, em si mesma, uma instituição. O desvio de recursos é criminoso e, certamente, prejudica o País, mas a institucionalização da desqualificação da lei coloca em risco a democracia.
Reunindo os fios da meada: quando um indivíduo ou grupo tem uma visão de mundo paranoica do tipo “nós, os bons/justos/donos da verdade, contra eles, os maus/desleais, que ameaçam nossa sobrevivência”; quando este indivíduo ou grupo convoca, pela via do amor ou da intimidação, o lado inconsciente, infantil, submisso e reverente das pessoas que o cercam; quando a instituição torna natural a desqualificação da lei, e acena, sedutora, mas perversamente, com a possibilidade de realização das fantasias infantis de onipotência, estão dadas as condições, do ponto de vista psíquico, para a corrupção descarada e deslavada. Mais cedo ou mais tarde, paga-se, como na lenda sobre o Dr. Fausto, o preço de se vender a alma ao diabo.
Propina na ficção
Em tempos de Mensalão e Petrolão, o filme Sindicato de ladrões ( Elia Kazan, 1954, On the waterfront) é obrigatório. Conta a história da luta contra a corrupção que tomou conta do sindicato dos estivadores de Nova York na década de 1950. O sindicato, que deveria ser dirigido pelos trabalhadores, está nas mãos de uma máfia que controla as operações embolsando lucros milionários. Propinas e superfaturamento fazem parte do cotidiano. Ninguém mais consegue trabalho se não se submeter às chantagens e extorsões dos chefões. Para garantir seus privilégios, estes são implacáveis com qualquer um que os critique ou se oponha a seus projetos pessoais. Os “traidores” são sumariamente eliminados, sem que os mandantes dos crimes sejam punidos. O efeito psicológico desse sistema corrupto é que os trabalhadores perdem a dignidade, atemorizam-se e perdem a esperança em um futuro melhor. O clima é opressivo e depressivo. As coisas começam a mudar quando uns poucos inconformados se mobilizam para recuperar a autonomia do sindicato. No começo, com medo das consequências, os estivadores hostilizam os colegas que denunciam o esquema e tentam desmontá-lo. Aos poucos, na medida em que recuperam a autoestima e a esperança, descobrem que são muitos contra poucos. Vencem a inércia, saem da passividade e passam a se responsabilizar pelo que é deles.
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