Em um ano, 1,2 milhão de trabalhadores passam a gerar renda em casa

por Cássia Almeida e Naíse Domingues
O Globo
Outubro 2019




Desde o primeiro trimestre de 2018, mais 1,2 milhão de pessoas passaram a usar a própria casa como local de trabalho. Já são 4,5 milhões de brasileiros nessa situação, de acordo com estudo da consultoria IDados a partir de estatísticas do IBGE. O crescimento é explicado principalmente pela crise prolongada do mercado de trabalho, que ainda gera poucos empregos formais, mas também reflete as facilidades trazidas pela tecnologia para eliminar o tempo e o dinheiro gasto com transporte e alimentação fora de casa.

O teletrabalho ajudou a técnica em administração Karen Luz, de 24 anos, a aumentar a poupança da família para a casa própria. Com carteira assinada, trabalha remotamente para uma empresa de telecomunicações enquanto toca sua própria marca de doces artesanais. Ao passar a trabalhar em casa, em Realengo, na Zona Oeste do Rio, deixou para trás a rotina diária de três horas no trem e no metrô para ir à empresa, no Centro.

— O que ganho com os doces ainda não dá para os gastos. O mercado é bem oscilante, e preciso de estabilidade. Tenho meu filho que precisa de mim — diz Karen, que ainda cursa faculdade de Administração.



Maioria por conta própria

Ter um trabalho remoto com carteira assinada, como o de Karen, ainda é para uma minoria, apenas 1,1% do total de pessoas que hoje geram renda sem sair de casa. A maior parte dos que estão nessa situação é de trabalhadores por conta própria: cerca de 3,9 milhões.

— O crescimento da informalidade explica boa parte do aumento do trabalho em casa. É um fator que pesa bastante — afirma Tiago Barreira, pesquisador do IDados, responsável pelo estudo.

A maior parte dos que trabalham em casa ganha pouco (metade ganha menos de um salário mínimo) e não tem instrução (27,1%), mas a parcela de trabalhadores domiciliares com ensino superior está aumentando: subiu de 16,3% no início de 2018 para 19,3% no segundo trimestre deste ano. Também aumentou, de 4,8% para 6,1%, a participação dos que ganham mais de cinco salários mínimos com atividades realizadas em casa.

O psicólogo João do Nascimento, de 24 anos, atendia em uma sala sublocada no Centro de Niterói, mas decidiu receber pacientes em casa para cortar o gasto com o aluguel. Também faz consultas por meio do computador:

— Se continuasse a atender na sala, estaria hoje pagando para trabalhar. Depois comecei a atender via skype. Muitos pacientes até preferem on-line. Pretendo aumentar meus atendimentos virtuais, mas sem excluir o presencial.

Segundo Marcelo Neri, diretor da FGV Social, o avanço tecnológico facilitou o trabalho em casa, e o trânsito caótico das grandes cidades combinado ao alto custo do transporte também estimula essa opção. Ele cita a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgada na semana passada pelo IBGE, que mostrou que o transporte passou a ser a maior despesa das famílias, superando alimentação.

— E o computador com internet ainda está crescendo nas famílias — observa Neri.

Dois terços são mulheres

A presença feminina entre os que trabalham em casa é maior: elas são 68,8%. Apesar de vantagens como a carga horária flexível, o procurador do Trabalho Rodrigo Carelli observa que há perdas na comparação com o emprego tradicional. Segundo ele, quem trabalha em casa tem menos proteção. Não há controle de jornada e o trabalhador ainda fica com o ônus de manutenção dos equipamentos que usa desde a reforma trabalhista:

— O trabalho em casa é mais precário. Ainda há uma questão de gênero. Geralmente, são mulheres que fazem teletrabalho. Acumulam cuidados de filhos e idosos, da casa, cumprindo tarefas que a sociedade impõe. Assim, perpetuamos a sobrecarga delas.

Flávia Rissino já trabalhava remotamente como atendente de telemarketing em sua casa, em Itaboraí, na região metropolitana, mas acabou perdendo o emprego formal em 2016. Ela foi obrigada a mudar de atividade, mas manteve o local de trabalho. Ela já fazia doces para vender desde 2014, e essa passou a ser sua principal fonte de renda.

— Fui demitida porque a empresa acabou com trabalho remoto, e eu não queria me deslocar todo dia. Como já fazia doces, resolvi continuar a trabalhar em casa.

Mas a crise também atingiu seu negócio. Após sentir uma queda de 40% nas encomendas, Flávia teve que procurar outra renda. Para manter as contas em dia e pagar a faculdade de Pedagogia, começou trabalhar como inspetora em uma creche. Ganhando um salário mínimo, ela percebeu outra oportunidade: usar o carro a caminho do trabalho para fazer transporte escolar.

— As encomendas são muito instáveis, e a faculdade vence todo mês. Comecei a rota para pagar a faculdade. Hoje, o transporte e os doces são metade da minha renda — conta.

O fim do home office na empresa de Flávia vai na contramão do que vêm experimentando grandes companhias. Segundo pesquisa da consultoria Mercer com 680 companhias no país, 35% já têm a opção de trabalho em casa em alguns dias da semana e 62% adotaram horários flexíveis. Segundo Nelson Bravo, consultor da Mercer, esse é um benefício que agrada os profissionais e ajuda a cortar custos. Os escritórios podem ter menos estações, já que empregados não vão todos os dias.

— A procura por consultoria vem crescendo, desde 2017, com a reforma trabalhista, que regulou a situação. A oferta de teletrabalho atrai e retém funcionários, que não precisam gastar tempo no trânsito e têm mais flexibilidade na rotina — diz Nelson Bravo, consultor da Mercer.

Empresas adotam sistema

Nas multinacionais Novartis e GE, o home office já existe, mas não para 100% da jornada semanal.

— É lógico que há funções com menos espaço para trabalho em casa. Quem toca operação na fábrica, por exemplo, tem que estar presente, mas amarrar um funcionário ao escritório não é necessário. Os mais jovens já estudam em qualquer lugar, não há dificuldade — diz Ana Lucia Caltabiano, vice-presidente de Recursos Humanos da GE, que trabalha em casa dois dias da semana. — Minha secretária também faz home office, e muitas vezes almoçamos juntas.

Na Novartis, o trabalho remoto está institucionalizado, conta Julia Fernandes, diretora de Pessoas e Organização da farmacêutica. Empregados têm banco de horas e vão controlando a jornada, diz ela:

— O funcionário tem autonomia e pode trabalhar em casa alguns dias . Isso aumenta o engajamento.

O procurador Rodrigo Carelli observa que o trabalho remoto tem a desvantagem de reduzir a interação entre profissionais, o que, para ele, pode afetar a capacidade de inovação da empresa.

— Não é à toa que a Google tem locais de recreação para funcionários. É nesse momento que ideias surgem — diz o procurador do Trabalho, que também alerta para problemas de saúde que podem ser causados pelo isolamento, como a depressão, e doenças osteomusculares com o trabalho contínuo em mobiliário sem ergonomia apropriada, como trocar a estação de trabalho no escritório por uma mesa de jantar.

Além do domicílio, outros locais diferentes das empresas estão crescendo como fonte de renda para os brasileiros. A rua e o carro se tornam cada vez mais uma saída para quem não está conseguindo emprego com carteira assinada.

O trabalho na rua, como vendedor de quentinha e ambulante, ganhou espaço. Passou de 6,8% no início de 2018 para 7,8% este ano. São mais 179 mil trabalhando nas ruas, somando 2,4 milhões nessa situação, segundo o levantamento do IDados.

Em pouco mais de um ano, mais 368 mil pessoas passaram a dirigir para viver. Atualmente, há 3,8 milhões ganhando a vida ao volante.

— A tecnologia, com os aplicativos, ajuda a oferecer uma alternativa nessa situação de crise, com crescimento econômico lento — diz Bruno Ottoni, pesquisador do IDados.

Como o mercado reage lentamente, a taxa de desemprego vem caindo às custas do trabalho informal. Atualmente há 24 milhões de trabalhadores por conta própria e 16,3 milhões sem carteira.

— São ocupações que aparecem, já que há pouca criação de vagas formais — diz Ottoni.

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